Por que o Bom Retiro é considerado ‘cool’ pelos gringos?

A Rua Três Rios, que chamou atenção da Time Out, sintetiza a diversidade étnica do bairro e ajuda a contar a história da capital paulista

Por Bruno Chaise
Atualizado em 31 jan 2022, 14h51 - Publicado em 1 jul 2021, 12h32
Placa de boas vindas do bairro Bom Retiro na entrada da Rua José Paulino
Placa de boas vindas do bairro Bom Retiro na entrada da Rua José Paulino (Prefeitura de São Paulo/Divulgação)

Tudo fez sentido quando o rabino que andava na minha frente optou por um restaurante coreano ao invés do paraguaio, que tocava música portenha do outro lado da rua. A diversidade étnica escancarada em uma única cena esclareceu um dos motivos pelos quais a revista inglesa Time Out considerou a Três Rios a sétima rua mais cool do mundo. Porém, é preciso separar o joio do trigo: o adjetivo em inglês usado para classificar a via nada tem a ver com beleza. Se a expectativa é encontrar prédios vistosos ou lojas de grifes internacionais, siga para a Oscar Freire. A Três Rios está mais para uma central de pequenas curiosidades no coração do Bom Retiro, um dos bairros mais multiculturais de São Paulo.

Os imigrantes que chegavam pelos trilhos

O nome da rua que chamou tanta atenção dos britânicos é uma homenagem ao Marquês de Três Rios, registrado em cartório como Joaquim Egídio de Sousa Aranha. Foi em parte por causa do loteamento da fazenda deste cafeicultor que a história do Bom Retiro começou em meados do século 19. A outra parte pode ser atribuída à proximidade do bairro com a antiga linha férrea por onde passa hoje a CPTM. Uma horda de imigrantes fugidos de guerras, revoluções e crises econômicas desembarcavam dos trens e acabavam ficando na região em busca de oportunidades de trabalho nas indústrias. Vestígios desta época ainda podem ser encontrados na Rua da Graça, onde os primeiros italianos fincaram raízes na Vila Michele Anastasi, mas não só. A proximidade entre uma sinagoga e o centro comercial K Square, que costumava promover workshops de música popular coreana, dispensa explicações. Por todos os lados, o Bom Retiro exala o seu passado migratório, que nos últimos 80 anos reuniu judeus, portugueses, bolivianos e, principalmente, coreanos, em um único reduto. 

Centro comercial K Square, na Rua Guarani
Centro comercial K Square, na Rua Guarani (Bruno Chaise/Arquivo pessoal)

Cultura é cool

Para quem desembarca na Estação Tiradentes do metrô, o ponto de partida é a Praça Coronel Fernando Prestes. Fechada para carros e bem arborizada, ela é cercada por edificações que sediam o Arquivo Histórico de São Paulo. A Rua Três Rios começa logo ao lado, no cruzamento com a Afonso Pena, mas seu aspecto muda enormemente dependendo do dia. De segunda a sábado, a abertura do comércio faz com que a via fique quase caótica, enquanto que no domingo impera a tranquilidade. Porém, a revista Time Out acertou ao destacar que a Três Rios tem um senso de comunidade sempre presente, ponto chave para ela ter sido considerada tão cool.

Praça Coronel Fernando Prestes, na saída da estação Tiradentes em São Paulo
Praça Coronel Fernando Prestes, na saída da estação Tiradentes em São Paulo (Francine Azevedo/Arquivo pessoal)
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Pouco mais de 200 metros separam dois prédios que representam bem a efervescência cultural do Bom Retiro. O primeiro é a Oficina Cultural Oswald de Andrade, instalado em um edifício de 1905, que sedia atividades de difusão de artes cênicas e visuais, além de exposições e espetáculos de dança e teatro. A pandemia, porém, obrigou o local a receber apenas com hora marcada através do Whatsapp (11 94343 9338) e permanência máxima de 45 minutos.

O segundo endereço é a Casa do Povo, centro cultural que nasceu logo após o fim da Segunda Guerra Mundial, em 1946, com o desejo duplo de homenagear as vítimas dos campos de concentração nazistas e reunir os mais variados grupos de imigrantes do Brasil. O local, que é frequentado por uma dezena de movimentos e coletivos, hoje espalha cultura através de cursos e grupos de estudo. Essa trajetória é detalhada através do passeio sonoro, uma série de gravações de áudio criadas pela Casa do Povo que vão guiando pelas ruas do Bom Retiro. Uma pena que as visitas presenciais ao prédio, assinado pelo arquiteto Ernest Carvalho Mange, ainda estejam suspensas devido à crise sanitária. Por enquanto, o espaço só abre para projetos pontuais, como a arrecadação de roupas e alimentos não perecíveis para os moradores da região que passam dificuldade durante a pandemia (interessados em colaborar podem se cadastrar através do site).

A Casa do Povo está fechada temporariamente para o público em geral
A Casa do Povo está fechada temporariamente para o público em geral (Casa do Povo/Divulgação)

Destinos gastronômicos

A cena do rabino que mencionei no início do texto se materializou na hora do almoço, enquanto a lista de destinos gastronômicos aumentava a cada passo. Apesar da fachada discreta, o pequeno restaurante coreano Hwang To Gil acumulava fila na porta no domingo da minha visita. O mesmo acontecia no Acropólis, o restaurante grego mais antigo da cidade. Inaugurado em 1959, ele fica logo em frente à entrada da Vila Michele Anastasi e possui um salão diminuto, o que pode explicar em partes a necessidade de espera por uma mesa.

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Restaurante Hwang To Gil no Bom Retiro
Restaurante Hwang To Gil no Bom Retiro (Francine Azevedo/Arquivo pessoal)

As chances melhoraram quando deixei o miolo do bairro e cruzei a Avenida Tiradentes com os olhos bem abertos – mesmo durante o dia, vale ficar atento ao circular a pé pelas ruas desertas da região. O destino era a Rua Dom Antônio de Melo, já no bairro da Luz, endereço da Esfiharia Effendi desde 1973. A caminhada valeu cada passo: o restaurante armênio “raiz” me fez sentir dentro dos programas de Anthony Bourdain. O carro-chefe da casa é a esfiha de queijo com basturma, uma carne seca com tempero típico armênio. Duas dessas delícias, mais um jarra de suco de laranja natural, saíram por R$25, valor modesto na capital paulista. 

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Dos sneakers ao Corinthians

De volta à Rua Três Rios, a Guadalupe é uma referência no mundo dos tênis do tipo sneakers desde 2011. Lá estão expostos pares de edições limitadas e temáticas, como o que traz o logo da cervejaria Duff dos Simpsons. O preço dos calçados corresponde à raridade: quanto mais exclusivo, mais caro. No seu aniversário de dez anos, a loja lançou um tênis para lá de especial em parceria com a Converse. Batizado de Chuck 70, o par de sneakers é todo uma homenagem ao Bom Retiro.

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Referência no comércio e confecção de roupas, o bairro possui ruas que foram praticamente rebatizadas de acordo com a sua especialidade. A Rua São Caetano, por exemplo, é chamado popularmente de Rua das Noivas tamanha a variedade de lojas vendendo vestidos brancos e afins. Se estiver em busca de tecidos, a Guarani na Rua Três Rios é certamente uma das mais antigas da região: existe desde 1925. Mas, se o interesse for por roupas e acessórios, siga para a Rua José Paulino e arredores, que concentram mais de 350 opções de lojas. O fluxo de pessoas ali chega a assustar aos sábados, mesmo nos pandêmicos.

Com o fechamento do comércio aos domingos, porém, fica mais fácil reparar em um pequeno obelisco preto e branco, que marca o local onde os operários italianos fundaram o Sport Club Corinthians Paulista, que viria a se tornar um dos principais times de futebol do Brasil. Também fica no Bom Retiro, aliás, a escola de samba Gaviões da Fiel, assim como a Tom Maior – outras duas opções de programas para gringo e paulista nenhum botar defeito.

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Obra em homenagem ao Sport Club Corinthians Paulista, fundado em 1º de setembro de 1910
Obra em homenagem ao Sport Club Corinthians Paulista, fundado em 1º de setembro de 1910 (Francine Azevedo/Arquivo pessoal)

 

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