Roteiro de 3 lugares em Belo Horizonte que inspiraram os poetas
Com desenho urbano moderno e boa pra perambular, a capital de Minas inspirou muitas das principais obras da literatura brasileira
Roteiro 1 – Centro: onde Drummond escalou os arcos da Santa Tereza e Luiz Vilela buscava inspiração
O primeiro roteiro pode ser percorrido a pé, na região que inspirou os modernistas e motiva os escritores contemporâneos com seu traçado em xadrez. Andando, cada um inventa sua própria cidade: o centro de BH é um emaranhado de avenidas diagonais superpostas às ruas ortogonais, com nome dos estados da União, entrelaçadas àquelas que remetem a tribos indígenas.
Se quiser, cantarole Ruas da Cidade, do antológico Clube da Esquina Nº 2, de 1978. “Para quem chega, a experiência é estonteante até que, mais dia, menos dia, o hábito se instala”, diz o poeta e tradutor baiano Duda Machado, que mora há 18 anos na capital mineira, admirado com o choque do planejamento dos traçados triangular e retangular com a elevação montanhosa e as muitas ladeiras.
Comece pela Rua Sapucaí, espécie de “orla” seca da região, com destaque para o restaurante do italiano Massimo Battaglini, a Salumeria Central, bem como para o bar Dorsé.
Dali, da balaustrada da avenida, você tem uma bela visão do centro: aviste a Praça da Estação em um ângulo diferente e, olhando para a esquerda, o Viaduto Santa Tereza, onde, no final dos anos de 1920, Carlos Drummond de Andrade, aos 27 anos, escalou um dos arcos.
Com revestimento de argamassa em tom de concreto, o viaduto foi criado para ligar o bairro da Floresta, onde morava o poeta, ao centro – cumprindo, profeticamente, os desígnios da letra do compositor Rômulo Paes: “Minha vida é esta: subir Bahia e descer Floresta”.
O “alpinismo urbano” foi repetido por algumas gerações de escritores, como a de Fernando Sabino, que recriou, em forma de ficção, o ritual em O Encontro Marcado (1956). Hoje, o viaduto conjuga aparência decadente e importância cultural e histórica. Só olhe, não precisa subir!
O próximo destino é o Edifício Maletta. Antes de chegar lá, no caminho, passe bem ao lado do Palácio das Artes, pelo Parque Municipal, um dos cenários de Os Novos (1971), de Luiz Vilela, prosador que frequentava o local em busca de inspiração. Mas não perca o foco no Maletta: vire à esquerda na Rua da Bahia, que, nas palavras do poeta Paulinho Assunção, “inventou Belo Horizonte”.
Famosa, a rua concentrou os bares favoritos de jornalistas e escritores e as redações dos principais jornais impressos – num deles trabalhou Rubem Braga, que, fazendo troça do caráter provinciano da metrópole, chamou-a de “Belorizontem” numa crônica.
“Haja cidade, disse a Rua da Bahia em uma segunda-feira chuvosa, muito tediosa, sem nada para fazer, só com empadas nos mostruários e alguns udenistas de cachecol. E houve então a cidade”, completa Assunção.
O Edifício Maletta fica na confluência da Bahia com a Avenida Augusto de Lima. É um mundaréu de galeria, livraria, sebo, self-services, barbearia, lojas, escritórios e bloco residencial. Peça um bife à parmegiana na Cantina do Lucas, dê uma incerta no sebo Crisálida, na sobreloja, onde o varandão abriga happy hour e baladas noturnas, e considere bares e restaurantes como o Lua Nova, Objetoria, Dub, Nine e Arcângelo.
O paulista Mário de Andrade visitou Belo Horizonte em quatro ocasiões. Na segunda delas, em 1924, fez a leitura, na sacada do Grande Hotel, do poema que acabara de escrever, o Noturno de Belo Horizonte. O hotel foi demolido para a construção do Maletta, inaugurado em 1961.
O passeio termina seguindo pela Augusto de Lima até chegar ao Mercado Central (no número 744), que merece reiteradas visitas.
Um dos lugares mais conhecidos da capital mineira, o mercado ganhou saborosas referências no livro O Mundo Acabou, de Alberto Villas, com o relato de incursões para comprar frutas e outros produtos, e também no poema de Ricardo Aleixo Cine-Olho, que flagra um menino, “um ponto riscado a laser na noite de rua cheia/ali para os lados do Mercado”.
Esse local tão querido também pelos turistas é tema de um dos livros, assinado pelo compositor Fernando Brant, da ótima coleção BH. A Cidade de Cada Um (Conceito Editorial), que reúne 28 títulos lançados sobre pontos importantes de “Belô”, “Belorizoo”, “Belzonte” – vá somando aí os apelidos da terra de escritores que já moraram aqui e voltam de vez em quando, como Silviano Santiago e Affonso Romano de Sant’Anna.
“De súbito, um deles sugeriu: – Vamos subir no Viaduto? Hugoera o mais ágil: galgava o parapeito com presteza, corria sobre a estreita fita de cimento, a trinta metros do solo, como se andasse em cima de um muro. Curvado, subia o grande arco que se elevava, abrupto, sobre a própria amurada. Eduardo subia do outro lado. Lá em cima se encontravam, equilibristas de circo, passavam um pelo outro, vacilavam, ameaçavam cair.” – Fernando Sabino, trecho de O Encontro Marcado
Roteiro 2 – Liberdade e Savassi: onde Fernando Sabino “Puxou ANGÚSTIA” e Álvaro Andrade Garcia viu a “Luz Tersa”
“Belo Horizonte, que lindo nome! Fiquei a repeti-lo e a enroscar-me na sua sonoridade”, escreveu Pedro Nava, outro morador da cidade e modernista da turma de Drummond. Com a citação do maior memorialista brasileiro, você inicia um novo roteiro, a fim de identificar o que o filósofo francês Michel Butor classificou de “espírito do lugar”, aqueles locais que definem a identidade de qualquer cidade.
Nesse caso, são os lugares que, ao longo do tempo, serviram de cenário para que diversas turmas de escritores se reunissem para conversar, beber e trocar ideias. Nessa perspectiva, mergulhe de início na Praça da Liberdade, com suas palmeiras-imperiais, fontes, jardins e estátuas. Praça tão antiga quanto a cidade, foi ponto de encontro de todas as gerações de poetas, contistas, romancistas e cronistas mineiros.
Por exemplo, Fernando Sabino e seus três principais amigos – Otto Lara Resende, Hélio Pellegrino e Paulo Mendes Campos – se reuniam ali pra “puxar angústia”, como ele dizia. Os quatro, aliás, estão representados nas estátuas de bronze que compõem a obra Encontro Marcado, que fica em frente à Biblioteca Pública Estadual Luiz de Bessa, uma das muitas obras projetadas por Oscar Niemeyer na cidade.
Circundando a praça, passe um tempo nos prédios do Circuito Cultural, especialmente o Memorial Minas Gerais Vale, o Museu de Minas e Metal e o Centro Cultural Banco do Brasil – este último, de 1926, é o prédio mais novo dos três. O Museu Espaço do Conhecimento UFMG dispõe de telescópios para apreciar estrelas à noite.
Depois, dê uma subida ao terceiro andar da Biblioteca Luiz de Bessa. Ali fica a redação do Suplemento Literário de Minas Gerais, que é uma das mais antigas publicações culturais do Brasil. De distribuição gratuita, em suas páginas já publicaram os mais importantes autores do país e do exterior.
Criado por Murilo Rubião, em 1966, lançou nomes como Humberto Werneck, Sérgio Sant’Anna e Jaime Prado Gouvêa, o atual editor.
Fique atento à programação da Academia Mineira de Letras (Rua da Bahia, 1466), que guarda o acervo do escritor Eduardo Frieiro e oferece boas conversas com escritores. Feito isso, desça a Avenida Cristóvão Colombo e vire à direita na Rua Fernandes Tourinho, conhecida pelo corredor de livrarias frequentadas por autores contemporâneos, como a poeta Ana Martins Marques e os contistas Marcílio França Castro e Carlos de Brito eMello.
Aos sábados, pela manhã, costumam acontecer lançamentos de livros na Scritptum, que é um dos pontos de distribuição gratuita da coleção Leve um Livro, idealizada pelos poetas Ana Elisa Ribeiro e Bruno Brum.
Outra livraria a destacar é a Quixote – sua seção de livros infantis chama-se Bartolomeu Campos de Queirós, em homenagem ao escritor, morto em 2012. Por último, a Ouvidor Savassi, que brinda os clientes com a presença contagiante da vendedora de livros Simone Pessoa, há décadas no ramo.
Estamos no bairro Savassi, local em que o poeta Ronald Polito mais se sente bem. “Todas as vezes em que penso que preciso estar em algum lugar de que gosto muito, penso na Savassi, que é capaz, sabe-se lá por quê, de me provocar a sensação de êxtase, completude, integração, unidade.”
Se calhar de ser uma tarde no mês de maio, repare no azul do céu, em que o poeta Álvaro Andrade Garcia reconhece uma “luz tersa” – ou seja, nítida, uma luz limpa, sem nenhum obstáculo que atrapalhe seu esplendor.
Ande por dez minutos até a Rua Leopoldina, 415, no bairro de Santo Antônio, passando pela Avenida do Contorno. É o endereço em que morou Guimarães Rosa até 1930, quando ele se formou em medicina. De 1981 a 1999, funcionou ali o Bar do Lulu.
A fachada da casa está coberta com tapume, foi comprada por uma incorporação imobiliária, que decidirá se preserva o casarão. Na mesma rua, um lugar produz fãs instantâneos: a Chá Comigo, com café, chá, cervejas e vinhos.
Próximo dali, na Rua Padre Odorico, 38, pode-se almoçar no Dona Lucinha, de comida mineira, e que guarda o Cantinho do França, espaço-homenagem ao escritor Oswaldo França Júnior, autor de Jorge, um Brasileiro (1967).
“Mas os belos horizontes, o espírito de Minas, o clima de montanha, a fala musical, o gosto pelas artes, o velho mercado, as pernas, os olhos das moças, o prazer da conversa, a comida, o pastel, os bolinhos, a manha política, a intimidade com o violão, a ironia, o pavio comprido, a doce vaidade de ser mineiro e belo-horizontino continuam intocados, após um século de – vá lá – progresso.” – Ivan Angelo, trecho da crônica Belos Horizontes (1997), escrita no centenário da cidade
Roteiro 3 – Pampulha: onde Cyro dos anjos imortalizou uma rua e Marcus Freitas botou um corpo na lagoa
Antes de 1943, a região da Pampulha era um lugar abandonado, nas cercanias da capital. Nesse ano, o então prefeito Juscelino Kubitschek a transformou num ponto de atração turística, com a inauguração do Complexo Arquitetônico, com obras de Oscar Niemeyer, Cândido Portinari e Burle Marx.
Desde julho de 2016, o Conjunto Moderno da Pampulha é Patrimônio Cultural da Humanidade pela Unesco. Merece, naturalmente, uma visita, que deve ser feita de carro, diferentemente dos roteiros anteriores, devido à distância entre os pontos de atração, todos na Avenida Otacílio Negrão de Lima.
Comece pela Casa JK, no número 4188 da avenida, com o telhado em forma de asa de borboleta. No número 3000, encontram-se as formas inovadoras da Igreja de São Francisco de Assis, cartão-postal de Niemeyer, e as indefectíveis abóbadas da nave central, metáforas das montanhas mineiras. Um detalhe curioso é que a entrada é de frente para a lagoa e de costas para a via principal.
No número 751, fica a outrora Casa do Baile, atual Centro de Referência de Urbanismo, Arquitetura e Design. Um dos grandes poetas do Brasil, Affonso Ávila dizia ser frequentador assíduo da casa – em seu livro O Visto e o Imaginado (1990), há uma série de 31 poemas dedicados a lugares pampulhescos. A Casa do Baile foi criada para ser um restaurante compista de dança. O Iate Tênis Clube está no número 1350, próximo ao Mineirão, citado por muitos cronistas.
Contornando a lagoa, o Museu de Arte da Pampulha está no número 16585. No local funcionava o antigo cassino, até a proibição, em 1946, dos jogos de azar no Brasil. Dos diversos textos sobre ele destaca-se o de Wilson Figueiredo, da geração de Autran Dourado, que relembrou, em uma entrevista, dos momentos em que passou ali, um ponto alto na vida citadina.
Ao final da excursão, um bom restaurante pra estabelecer (ou renovar) amizade com a gastronomia do estado é o tradicional Xapuri, na Rua Mandacaru, 260.
Testemunha de todos esses locais é a lagoa, cenário do romance policial Peixe Morto (2008), de Marcus Freitas. É em suas águas que um corpo aparece boiando, logo na cena inicial.
Mas você se engana se acha que a Pampulha se resume a esses lugares cheios de história (e estória). No livro de poemas e fotografias Pássaros Poemas: Aves na Pampulha (2012), outro participante do Clube da Esquina e também escritor, Tavinho Moura, apresenta 150 espécimes que vivem na lagoa – entre eles, as raramente flagradas gaivotas trinta-réis e a coruja-orelhuda.
Saindo do complexo, não deixe de conhecer as relíquias do Acervo dos Escritores Mineiros, na Biblioteca Central da Universidade Federal de Minas Gerais no Campus Pampulha, pensado para preservar a memória da vasta produção literária de Belo Horizonte.
Lá estão recriados os ambientes de trabalho de Murilo Rubião, Oswaldo França Júnior, Abgar Renault, Wander Piroli e Fernando Sabino, entre outros mestres da palavra.
Por fim, arrisque uma ida à Rua Erê, no bairro Prado (a 22 minutos de carro do campus), só para uma rápida passagem por essa via imortalizada no clássico O Amanuense Belmiro (1937), de Cyro dos Anjos. O personagem principal, o burocrata do título, divide sua vida entre a Rua Erê e a região central da cidade, onde trabalha em uma repartição pública e se encontra com os amigos.
Para a crítica especializada, é com esse livro que Belo Horizonte se caracteriza, definitivamente, como cenário da grande ficção brasileira.
A falta de outros atrativos turísticos da rua é pretexto para uma esticada, ali bem perto – menos de 800 metros -, nos botecos da Rua Francisco Sá ou, dependendo do horário, na Sala Minas Gerais (Rua Tenente Brito Melo, 1090, Barro Preto), onde acontecem as apresentações da Orquestra Filarmônica do Estado.
Uma cidade pode ser um poema, uma linguagem, uma escrita. Leve em conta que essa viagem a Belo Horizonte também pode ser feita pelos livros e os autores citados ao longo deste texto, e considere fazer os passeios edepois ler os livros: um duplo prazer. Em tudo – no contato com as pessoas e os lugares -, haverá um pouco da mistura de tempos, dos insondáveis segredos de Minas e da vibração que eletriza as pessoas e que cabe a você decifrar.
“Subindo a Rua Erê, tomei à esquerda a Rua Diábase, que, mais para o alto, recebe o nome de Esmeralda. Segui-a até ao fim e, pela estrada que a continua, cheguei ao Morro dos Pintos. Do alto da colina, contemplei Belo Horizonte, que apenas despertava. As cores, já vivas, do céu e a luminosa beleza da cidade feriram-me os olhos. Os edifícios suntuosos, os grandes jardins públicos, as retas avenidas situam Belo Horizonte fora dos quadros habituais de Minas.” – Cyro dos Anjos, Trecho de O Amanuense Belmiro (1937)
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