Viagem em família para a mineira Tiradentes
Tiradentes envelheceu bem. Soube preservar suas características seculares e se modernizar na medida. O mais importante, contudo: é um lugar legal de ir
Minas é palavra abissal, dizia o verso de Drummond pinçado por um velho comercial de TV. A solenidade de jaquetão e chá com bolinhos da frase jamais me abandonou. E, toda vez que meu carro cruza a divisa de Minas, sou meio que tomado pelo Drummond com gosto de névoa, vênias excessivas e paredes encarquilhadas.
Não seria com essa fase, portanto, que eu iria convencer minhas filhas de 8 e 4 anos de que Tiradentes é um lugar legal para passarem as férias. Sorte que elas já conheciam – e gostavam – a cidade; sorte também que Maria Vitória, a mais velha, anda estudando sobre o herói que dá nome à antiga Vila de São José do Rio das Mortes; e sorte que Dudu, a caçula, adora feijão.
Além disso, Tiradentes é, de todas as cidades históricas mineiras, a única que envelheceu bem. Porque conseguiu guardar suas características seculares, ainda que maquiadas aqui e ali, sem ceder aos impulsos normais do progresso. Por isso soube preservar um Centro Histórico notável, agregando a ele coisas que todo turista gosta: hotéis e lojas de charme, boa comida, romantismo, gente simpática.
Sorte nossa também que as charretes são cor-de-rosa, algo que poderia ser para o charreteiro uma vantagem competitiva não fossem todas da mesma cor – estou exagerando só um cadim. Aquela em que estamos agora é puxada pelo cavalo Sereno e tem como emblemas a Hello Kitty e a gatinha Marie.
Com uma camisa do Corinthians, nosso condutor, Alexander, um dos 30 charreteiros que fazem ponto no Largo das Forras, vai soltando suas fases decoradas que quase soam melodiosas. De início revela que o chão que tínhamos como do século XVIII, com as grandes pedras apelidadas de solteironas por não se encaixarem com as demais, tem pouco mais de 50 anos, legado de um ex-prefeito; mas em frente ao chafariz dedicado a São José de Botas, este, sim, original, com suas velhas três bocas a jorrar a mesma água límpida dos tempos da Inconfidência, Alexander mostra os poucos metros que ainda restaram do calçamento original da cidade.
Na hora de subir a rua em direção ao antigo prédio da cadeia, também pintado de rosa – em 1940 ele serviu como penitenciária feminina, mas a distinção, segundo o guia, se deveria a um pedido da detenta Maria Elvira Ferreira, condenada nos tempos coloniais por adultério –, Sereno refuga e precisamos descer para pegar mais embalo e tentar de novo.
Defronte à cadeia, que está para se tornar mais um museu, fica a Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, construída, Alexander nos conta, sempre à noite, pelos escravos que trabalhavam de dia para seus senhores. Para que não se visse todo o ouro que eles desviavam para a nova igreja, escondido no cabelo e nas unhas, a porta frontal do templo era sempre mantida fechada.
Padres e inconfidentes
Tiradentes só virou Tiradentes em 1889, ano em que o único inconfidente enforcado pela Coroa se tornou também herói nacional pelas mãos dos republicanos que derrubaram Pedro II. O antigo arraial, que se desenvolveu por conta do ouro ali encontrado a partir de 1702, reverencia modestamente seu “padrinho”.
Há um busto com corda no pescoço na ladeira que leva à Matriz de Santo Antônio e uma coluna dórica de argamassa no Largo das Forras. Mais ilustres parecem ser os padres e vigários da cidade. A casa do padre Carlos de Toledo, hoje transformada em um belo museu, mostra os hábitos sofisticados – e nababescos – do também inconfidente.
Com 19 cômodos, tem forros pintados em motivos rococós. Uma das salas agora ostenta um mosaico de espelhos no chão para que possamos contemplar melhor as pinturas do teto. Versos de Marília de Dirceu, as famosas cartas de amor de outro inconfidente, Tomás Antônio Gonzaga, são ouvidos pelos alto-falantes.
O jardim dos fundos se prestaria fácil para uma bela partida de futebol soçaite. Difícil é se ilustrar ali sobre a inconfidência – o conjunto de pinturas, que mostram paisagens naturalistas do Rio de Janeiro, tampouco oferece pistas. Maria Vitória, caso estivesse comigo, sairia confusa.
A inconfidência também não está no novo Museu da Liturgia. Com recursos do BNDES, a antiga casa paroquial tornou-se um museu que lança mão dos recursos tecnológicos. Todo o seu acervo – 420 peças, entre roupas eclesiásticas e instrumentos próprios de missas e procissões – é projetado na parede.
Mas o acervo não está ali apenas virtualmente. Essas peças, antes guardadas nas igrejas, agora ficam seguras e conservadas diante do espectador. Chama atenção um santo de roca, que, aprendo ali, era muito comum nas igrejas franciscanas. Esses bonecos só tinham cabeça e membros e eram cobertos por roupas.
Difícil não notar o enorme São Jorge, padroeiro de Portugal, aqui todo restaurado, que saía em procissões pelas Gerais montado em um cavalo. As peças usadas nos cortejos, aliás, frisou a simpática diretora Maria Cristina Seabra, mineira de Diamantina, seguem saindo em procissão.
Não se conspira na Igreja Matriz de Santo Antônio, cuja construção começou em 1710, um dos grandes exemplos do barroco nacional. Aleijadinho desenhou o frontispício, ou seja, a parte central do topo da fachada, em curva. O ouro do interior, o altar-mor e os seis altares laterais, mandados construir por famílias e irmandades – como o dedicado a um colorido São Miguel Arcanjo –, são notáveis.
A reprodução de fases gravadas pelo ator Paulo Goulart e um ligar e desligar de lâmpadas internas configuram um “espetáculo de som e luz” que pode até ajudar a assimilar mais esses aspectos da Matriz. O espetáculo não vale ingresso. Se o orçamento for apertado, guarde esse dinheiro para a apresentação que vem a seguir, o concerto no órgão de 630 tubos da igreja, que se fez ouvir pela primeira vez em Tiradentes em 1788.
O fato de ter vindo de Portugal e subido do Rio a Minas em lombo de burro talvez impressione menos do que saber que o instrumento passou duas décadas ocioso, só voltando à ativa em 2009, após uma difícil restauração que contou com recursos dos moradores. Tudo isso a gente fica sabendo da boca das próprias organistas, Elisa Freixo e Josinéia Godinho, que também explicam, sem pretensões professorais, a razão da escolha do repertório.
No programa de dez peças que ouvi, elas privilegiaram composições que mostravam a versatilidade do instrumento, que passeava pelos graves e agudos a todo instante. Gostei de saber que na Elevazione um grupo de flautas das centenas do órgão emite um som chamado de voce umana – um som ligeiramente desafinado. Só à voz divina não se dá o direito de desafinar. Laudate Dominum!
Pratos estrelados
Se a Igreja se impõe sobre a história em Tiradentes, a comida me pareceu se elevar àquela ainda mais. Digo isso sem medo de excomunhão. Tiradentes realiza o talvez mais importante e certamente mais charmoso festival gastronômico do Brasil. O Festival Cultura e Gastronomia já ultrapassou a marca de 20 edições e anualmente atrai turistas famintos.
Curioso é que só agora Tiradentes se arrisca na cozinha contemporânea. Com seu curto cardápio sazonal, o restaurante Angatu, tocado pelo chef Rodolfo Mayer e por sua namorada, Angela Marini, que fica no atendimento, foca em apresentação, e não só dos pratos – a cozinha envidraçada é vista inclusive da rua –, mas não posso dizer que tenha adorado meu risoto de pato.
De qualquer forma, difícil imaginar que um turista vá desprezar a vigorosa culinária mineira em nome de modernidades. Não sei se “desconstruir” um tutu à mineira, um arroz com ovo e linguiça ou um frango com quiabo é mais difícil do que uma feijoada, mas acho que a moda não pega em Tiradentes.
Comi novamente bem no austero, austeríssimo Estalagem do Sabor, um daqueles restaurantes em que a gente se compraz em provar o mesmo tutu e a mesma couve de sempre, repara como envelheceu o garçom Marcílio, jovenzinho quando começou no lugar, 23 anos atrás, e acha graça nos retratos que mostram o proprietário, Vicente Teixeira, com o ex-presidente Lula, os dois maduros na primeira foto e absolutamente seniores na segunda.
Desta vez não voltei ao Pau de Angu, estrelado que vale pelo ambiente mais do que agradável, um sítio na estrada para Bichinho, mas conheci no Centro do distrito que enlouquece as mulheres pelo artesanato o Tempero da Ângela, self-service que o colega Seth Kugel, do New York Times, chamou de maior achado gastronômico do Ocidente.
É a própria Ângela que fica mexendo as panelas sobre o fogão a lenha, em uma sala escura, enquanto os clientes vêm se servir. Fanático por jiló e quiabo, aqui em estado da arte, não pude com quase mais nada, pernil ou qualquer outra parte do porco, que minha mulher, contudo, comeu com gosto a ponto de pedir para ser esquecida lá. As crianças e eu não concordamos, e ela regressou.
O senão é a fila longa. Quando perguntamos o porquê de uma sala de espera do tamanho do salão (e completamente repleta), a moça da porta, que a horas tantas teve de fazer ninar o filho pequeno, trazido da casa defronte pelo marido emburrado, disse simplesmente que não teriam como dar vazão à clientela. Você já deve ter ouvido muita gente falar que “cozinha por amor”, mesmo que a conta apresentada em seguida desdiga isso; pois agora achei alguém para quem a fase faz todo o sentido – só faltou que ela a proferisse.
Minhas meninas novamente gostaram de Tiradentes. Dudu chegou mesmo a chorar longamente no dia em que teve de deixar a pousada, pois havia adotado o leão e a leoa da recepção, animais feitos de madeira daquele artesanato característico de Bichinho. Na volta, perguntei às duas quais as coisas que mais chamaram a atenção delas na cidade, coisas que eu transformei nesta quadrinha. Espero que elas, e vocês, não a achem chinfrim.
Chão, charrete, chafariz.
Chá da tarde, chuva não.
Cadeia rosa, carros não.
Tiradentes, cidadezinha
charmosa, chata não é não.
Busque hospedagem em Tiradentes