Imagem Blog Achados Adriana Setti escolheu uma ilha no Mediterrâneo como porto seguro, simplificou sua vida para ficar mais “portátil” e está sempre pronta para passar vários meses viajando. Aqui, ela relata suas descobertas e roubadas

Bruno Bierrenbach Feder, o fotógrafo brasileiro que viaja pelos lugares esquecidos da África combatendo a miséria com imagens

Por Adriana Setti
Atualizado em 27 fev 2017, 15h14 - Publicado em 7 out 2015, 19h29
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O paulistano Bruno Bierrenbach Feder esteve na África várias vezes nos últimos dois anos. Mas, ao invés de fazer safári ou degustar vinhos no Cabo Ocidental, preferiu fotografar destinos aonde grande parte da humanidade pagaria para não ir. Um deles é Uganda, país que atravessou uma série de guerras civis nas últimas décadas, e que é uma das nações africanas brutalizadas pelo Exército da Resistência do Senhor (LRA, na sigla em inglês), o grupo terrorista (cristão) comandado pelo hediondo “guerrilheiro” ugandês Joseph Kony – um dos dez criminosos mais procurados pela Corte Penal Internacional. O outro lugar visitado por Feder é o Sudão do Sul, o país mais novo do globo (independente há apenas quatro anos), em cujo território milhões de pessoas vivem em campos de refugiados, vítimas da miséria e da violência resultante de mais de 30 anos de guerras civis intermitentes.

 

Sua saga africana começou, na verdade, em Nova York. Em 2013, durante um curso no ICP (International Center of Photography), Bruno conheceu a fotógrafa americana Louise Contino e decidiu acompanhá-la num projeto educativo em Wanteete, vilarejo a cerca de 150 quilômetros de Kampala, a capital de Uganda. De volta ao Brasil, teve a ideia de vender as imagens captadas e reverter o dinheiro em melhorias para as crianças da comunidade ugandesa: 600 lápis, 200 apontadores, 180 uniformes, mesas e cadeiras para a escola que, até então, não tinha mobília. A segunda temporada em Wanteete, para a entrega dos materiais, rendeu mais imagens, que acabaram na exposição Uganda Edition, em São Paulo. Mais uma vez, o dinheiro arrecadado foi revertido em melhorias para os protagonistas das imagens. E assim nasceu seu projeto social Cross Geographic.

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Bruno em ação em Uganda

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Bruno com as crianças uniformizadas em Uganda, após a venda das imagens

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Uma das personagens retratadas ao receber a foto em mãos, em Uganda

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Uma das imagens de Uganda que podem ser compradas através do site da Cross Geographic (R$ 350; tam. 30X40)

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Prestes a completar 32 anos, o fotógrafo (que também é formado em relações internacionais) dispensa tapinhas nas costas. “Minha intenção nunca foi fazer caridade”, diz Bruno. “Não quero ter a imagem do branco que chega em Uganda com a postura de salvador da pátria; a situação é inversa, toda vez que termino uma missão da Cross Geographic sinto que quem sai ganhando sou eu, que aprendo e evoluo como ser humano convivendo com essas pessoas”.

 

Dias após encerrar sua mais recente temporada no Sudão do Sul, Bruno concedeu a entrevista abaixo através de uma longa troca de e-mails e mensagens:

 

Por que você escolheu o Sudão do Sul para a segunda missão da Cross Geographic?

Além de ser o país mais novo do mundo, o Sudão do Sul é palco de um conflito que gerou uma das piores crises humanitárias na história recente. Cerca de 1,7 milhões de crianças e adolescentes foram privados de educação. Menos de 17% das garotas vão completar a educação primária – é mais provável que uma menina morra num parto ainda criança do que termine a escola primaria. O país ganhou independência em 9 de julho de 2011, depois de décadas de guerra civil. Em dezembro de 2013 um novo conflito começou e, além de causar milhares de mortes, fez com que cerca de 1,5 milhão de pessoas fossem deslocadas de suas casas. Atualmente, muitas delas vivem como refugiadas no próprio país, nos chamados campos de IDP Camps  (Internally Displaced Person Camps, “campos para pessoas deslocadas internamente”). Cerca de 12 mil crianças já foram recrutadas como soldados em grupos armados. Quando comecei o trabalho em Uganda, percebi o quão importante é apoiar a infância e comecei a idealizar a Cross Geographic para beneficiar menores em zonas de conflito. Muitas pessoas nem sabem da existência do Sudão do Sul. Portanto, me pareceu o lugar certo para usar o meu trabalho como ferramenta para conscientizar sobre o que está se passando por lá e ao mesmo tempo tentar ajudar de alguma forma.

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De onde vem esse impulso por ajudar pessoas de lugares tão remotos?

Sou fascinado pelo mundo, por valores culturais, pelas etnias e as diferentes formas como vivemos no planeta. Sempre me interessei por fronteiras, essas linhas geográficas que nos dividem em tantos aspectos. Lembro que, quando o Timor Leste conseguiu sua independência, me perguntava quem seriam essas pessoas que, por anos, lutaram e sacrificaram suas vidas para ter um espaço onde expressar seus costumes e meio de vida.  Isso influenciou a minha escolha pelo Sudão do Sul. Além do mais, eu já estava me sentindo muito confortável em Uganda e queria ir além.

 

Como você se virou para se instalar e começar a trabalhar?

Para chegar ao Sudão do Sul não basta querer. Durante meses estudei as possibilidades. Em princípio, a ideia era somente passar alguns dias explorado Juba, a capital do país, relativamente segura. Mas quando aprofundei a pesquisa quase desisti. Para ir de avião a burocracia é enorme e é preciso um convite de alguma instituição. A opção de tentar um visto na fronteira em Nimule, norte de Uganda, também foi logo descartada, já que nenhum motorista estava disposto a me levar e o ônibus que faz rota é um dos mais perigosos da região, com acidentes e sequestros frequentes.  Minha única opção seria conseguir trabalhar para alguma ONG que estivesse disposta a me receber. Comecei outra pesquisa e encontrei a Confident Children out of Conflict. A instituição mantém um orfanato para cerca de 30 meninas órfãs que foram violentadas sexualmente, além de alguns meninos que foram mantidos como soldados e estão em recuperação.  Comecei a enviar e-mails contanto do meu trabalho em Uganda e dois dias depois me responderam dizendo que estavam à procura de um fotógrafo. Me coloquei à disposição como voluntário. O acordo acabou sendo que, em troca do visto e da carta de convite, eu teria que seguir os protocolos de segurança e orientações.

Todas as imagens abaixo foram captadas por Bruno no Sudão do Sul:

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Retrato de uma mulher no Sudão do Sul. As cicatrizes na testa são "usadas" como adorno

Retrato de uma mulher no Sudão do Sul. As cicatrizes na testa são “usadas” como adorno

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 E como foi chegar lá com uma câmera na mão e uma ideia na cabeça?

Meu trabalho como fotógrafo foi um grande desafio. Mesmo com autorização e credencial do ministério de interior, é expressamente proibido fotografar nas ruas, pontes e outros pontos estratégicos. As pessoas em geral são muito hostis à fotografia e eu tenho que tomar muito cuidado para não colocar a vida delas em risco. Trabalhei com uma série de regras impostas pela ONG. Tinha toque de recolher às 9 da noite e cada imagem precisava do consentimento da pessoa fotografada por escrito.

 

E qual era o seu trabalho?

Meu trabalho era basicamente documentar o dia a dia das crianças no orfanato e o trabalho das assistentes sociais nos campos de refugiados. Nessa minha ultima visita também fui a Bor, no estado de Jonglei, um dos lugares mais afetados pelo conflito. Lá documentei o trabalho da HealthNet TPO, uma ONG holandesa que está fazendo o levantamento da necessidade de atendimento psicossocial nas comunidades. O país tem um número altíssimo de pessoas sofrendo de stress pós-traumático e o exército tem um enorme número de suicídios.

 

Como você conquista a confiança das ONGs?

Nunca precisei fazer muito esforço para conquistar a confiança das ONGs. Existe uma demanda enorme de apoio a essas instituições e poucas pessoas dispostas a trabalhar voluntariamente em um país em guerra. Trabalho com ONGs pequenas que, nessa região na qual venho atuando, são muitas vezes o trabalho de uma pessoa só. No caso da Beso em Uganda, por exemplo, a ONG é basicamente a história de vida de Aaron Bukenya. Ele viveu uma infância muito difícil em Wanteete e, após conseguir ir para Kampala e estudar, assumiu como missão melhorar a qualidade de vida das outras gerações. No Sudão do Sul, foi meu trabalho em Uganda que me deu as credenciais necessárias.  No ano passado permaneci mais de cinco meses no país e estive algumas vezes no norte, a região castigada por Joseph Kony. Então tanto a CCC quanto a HealthNet TPO sabiam que eu tinha experiência na região e que estava por dentro dos acontecimentos. Foi tudo muito simples. Algumas trocas de e-mail, conversas por Skype e foi tudo acertado. Sempre penso positivo e sei que no final vai dar certo.

 

Você faz muitos retratos. Como aborda as pessoas?

Em Uganda é muito mais fácil. Estudei um pouco de luganda e acholi, as línguas locais, e isso faz toda diferença ao pedir para fotografá-los. No Sudão do Sul, geralmente o primeiro passo é um encontro com  a comunidade. Em campos de refugiados, eu explico o motivo pelo qual estou lá, exponho o meu objetivo e pergunto se alguém se opõe a ser fotografado. Sou muito desenvolto. Então geralmente já chego brincando e sou bem recebido. Mas já tive correr algumas vezes.

Quando estou em campo, tento esquecer meus valores. É um exercício.  Chego sem preconceito ou opinião formada e sigo meu instinto. Acho impressionante o quanto sou bem recebido. Não tem explicação, é muito orgânico e sem dificuldades. Quando percebo que alguém está desconfortável dou espaço e sigo para outros personagens.

 

Como escolhe os personagens?

Sou muito interessado em pessoas e tenho uma tendência a ver beleza em tudo, até mesmo em um campo de refugiados. A maioria acharia aquilo a visão do inferno. Mas eu fico fascinado com a altura de certas pessoas, o porte, a elegância ao andar, as cores dos tecidos… Outro ponto do meu trabalho, aliás, é relatar também histórias positivas e, através de fotografia, mostrar um pouco sobre lugares aos quais não se tem muito acesso.

 

O fotógrafo Sebastião Salgado é frequentemente criticado por fazer uma “estetização da miséria” e se aproveitar do sofrimento alheio para fazer arte e dinheiro. O que você acha disso? Para você, faria sentido fotografar Uganda e o Sudão do Sul sem a filantropia por trás?

 A crítica sempre vai existir. O trabalho do Sebastião Salgado é incrível. Admiro todos os fotógrafos que escolhem ir até lugares dos quais a maioria das pessoas não quer nem chegar perto, justamente para dar uma voz aos que vivem lá. Nunca planejei meu trabalho filantrópico, fui para a região como fotógrafo para explorar e saber quem são essas pessoas, como elas vivem, quais os desafios que enfrentam. O trabalho social veio como uma consequência da minha vontade de fazer mais do que fotografar.

 

Como é o seu dia a dia quando está em trabalho de campo?

Intenso. Cada lugar tem sua dinâmica. No projeto de Uganda começo acompanhando as primeiras aulas e inspecionando para ver o que precisa de melhorias. Depois sigo para uma caminhada pela comunidade visitando as pessoas em suas casas. Aí geralmente recebo uma enxurrada de pedidos de todos os tipos. Em Wanteete não existe energia elétrica, água tratada ou saneamento básico. Como consequência, há muita gente doente. E o número de infectados por HIV também é alto. Vou anotando tudo para depois discutir como aplicar o dinheiro. No Sudão do Sul é diferente. A situação de segurança é muito precária, então sempre estou acompanhado de humanitários e por uma equipe de ONGs. Tudo tem que ser programado e aprovado antes. Mas apesar de muitas vezes ficar impactado com a realidade com que tenho que lidar, sempre estou me divertindo e aprendendo.

 

Você já passou algum perrengue feio no Sudão ou em Uganda? Já teve momentos de medo, doença e coisas do tipo?

Nunca passei medo em Uganda ou no Sudão do Sul. Quando decidi que iria me dedicar à fotografia nessa região, decidi também que não existia espaço para o medo. Tenho santo muito forte, nunca tomei remédio preventivo contra a malária (que na região é endêmica) e nunca fui contaminado. Quase fui preso algumas vezes no Sudão, mas sempre consegui me livrar na conversa. Mas em geral sou cauteloso. Em Uganda me sinto mais seguro do que em São Paulo, caminho à noite sozinho por Kampala sem problemas. O máximo que aconteceu foi tentarem roubar meu celular uma vez, mas não conseguiram. Em São Paulo já fui roubado três vezes à mão armada.

 

Como é conviver com a opulência paulistana na volta de uma empreitada dessas?

Sempre tive uma vida com bastante contrastes. Trabalhei por cinco anos entre o Governo do Estado e Prefeitura de São Paulo, o que me deu acesso a muitas comunidade carentes em minha própria cidade. E sempre tive consciência da enorme diferença social em São Paulo. Nas primeiras vezes que voltei de Uganda e Sudão cheguei a me sentir mal, mas hoje entendo como separar as coisas e estou feliz por ter a oportunidade de fazer o que faço. Procuro não julgar a forma como as pessoas vivem e o que fazem pelo próximo ou pela sociedade. Aproveito e me divirto onde estou, seja comendo posho nas ruas de Juba ou um sushi em São Paulo, que cai muito bem depois de algumas semanas em Uganda.

 

Quem compra as suas fotos?

No começo as fotos eram vendidas somente para amigos e conhecidos. As redes sociais ajudaram bastante a espalhar o projeto. Blogueiras que também compraram fotos e postaram, como a Luciana Tranchesi, Mica Rocha e Gabriela Pugliese, ampliaram bastante as fronteiras. Depois desses posts vendi fotos para Rio Grande do Sul, Goiás, Rio de Janeiro e até para o exterior, México, Espanha, França e Estados Unidos.

 

Que planos você tem daqui pra frente?

Estou a caminho de Nova York, onde por um ano vou estudar fotojornalismo no ICP International Center of Photography. A ideia é aprimorar a minha fotografia e expandir o projeto Cross Geographic para países como a República Central Africana, que está vivendo um conflito terrível entre muçulmanos e cristãos, Congo e Iêmen. O mundo é nossa casa e não prestamos atenção suficiente ao que acontece no quarto do lado. Minha intenção é, através da fotografia, expandir a consciência sobre a situação de pessoas em países afetados pela violência.

 

Como a sua família encara as suas imersões na África?

Minha família sempre me apoiou em tudo. Meus pais ficam um pouco aflitos quando estou em regiões como Bor, no Sudão do Sul, mas entendem que isso me faz feliz.

 

Como você anda em termos de fé na humanidade?

Eu tenho bastante fé na humanidade. A vida me mostra que para cada situação onde perco as esperanças conheço pessoas que a restauram. Mesmo nas piores situações existem histórias positivas e de sucesso. Tento focar nelas, mas muitas vezes fico muito frustrado com os mecanismos de trabalho e a falta de eficiência de agências como a ONU.

 

Qual a maior lição pessoal que você tirou disso tudo até então?

Pode parecer clichê, mas a vida começa fora da zona de conforto. O ser humano se adapta muito fácil. É só estar aberto para a experiência. No começo tive que lidar com preconceitos que nem sabia que existiam dentro de mim e aprendi que somos muito mais capazes do que acreditamos. Tirei o medo da minha vida e isso ampliou os meus limites.

 

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