Um tour pelo Rio com blocos de Carnaval – ou um texto sobre saudade
Nem só de cachaça de jambu se faz uma folia. Há muita história e beleza no caminho dos blocos, que, torcemos, voltam em 2022
Brinco que meus primeiros passeios pelo Rio foram com blocos de Carnaval. Cheguei à cidade em janeiro de 2018. E, depois de arrumar o apê, aprender o caminho até o trabalho, descobrir o supermercado e começar no vôlei de praia (sim, prioridades!), era hora de conhecer melhor o novo entorno. Afinal, só tinha passado um fim de semana no Rio até vir de mala e cuia.
Praça Tiradentes
Foi com o Cordão do Boitatá que dei meu primeiro rolé (para não contrariar a galera do bixcoito) pelo centro. No domingo anterior ao Carnaval, o cortejo saiu com sua multidão maquiada, colorida, espremida e feliz. Não me lembro bem qual foi o ponto de partida, mas sei que o grupo começou a se dispersar na Praça Tiradentes, que já foi chamada Rossio Grande. O principal monumento, uma estátua de D. Pedro I, está lá desde 1861, bem antes de o lugar se tornar uma homenagem ao inconfidente, em 1892.
A praça, que já foi um alagado, ganhou importância após a vinda da Família Real Portuguesa ao Brasil, em 1808. Conhecida também como Largo do Polé, após a instalação de um pelourinho, presenciou festas em honra do Divino da Irmandade de Lampedusa, composta por negros. Proibidas pela Corte – que construiu o Real Teatro São João para se entreter –, essas manifestações de pessoas vestindo mantos coloridos e adereços, ao som de diversos instrumentos musicais, estão na origem do Carnaval que conhecemos hoje.
Já o teatro, hoje João Caetano, que foi um imponente prédio clássico, sofreu três incêndios e ganhou suas nada interessantes formas atuais, em 1978. Há quem diga que ele é uma “verruga” na arquitetura da região, e até defenda sua demolição, para abrir uma ligação entre a praça e o Real Gabinete Português de Leitura, outra parada obrigatória do centro (e, ainda bem, nunca invadida pelo Boitolo – como explicarei depois!).
Rua do Ouvidor
Graças ao produtor cultural André Diniz e seu bloco parado, no sábado de Carnaval, conheci uma das ruas mais icônicas do Rio. Segundo Machado de Assis, ela resumia o que era a cidade em 1873. Para o também escritor Joaquim Manuel de Macedo, era a “mais passeada e concorrida, e mais leviana, indiscreta, bisbilhoteira, esbanjadora, fútil, noveleira, poliglota e enciclopédica de todas as ruas da cidade do Rio de Janeiro”.
Primeiro lugar a receber iluminação pública a azeite (e depois gás e energia elétrica), a Rua do Ouvidor reuniu confeitarias, modistas francesas e muitas livrarias, que atraíram a elite intelectual da época. Com o crescimento da cidade e a abertura de uma grande avenida, a Rio Branco, acabou perdendo parte da sua relevância, mas mantém o charme que garantiu seu lugar na história – e, por isso mesmo, mereceria ser mais bem cuidada pelo poder público, assim como todo o centro da cidade.
O bairro da Conceição
O Morro da Conceição, na Saúde, é uma das vizinhanças mais antigas do Rio e manteve seus ares coloniais enquanto os Morros de Santo Antônio, de São Bento e do Castelo foram destruídos ou completamente alterados no processo de crescimento da cidade. Suas ruas estreitas, íngremes e de paralelepípedos podem não parecer tão convidativas para os foliões, mas fazem da Banda da Conceição um dos blocos mais charmosos da cidade, não devendo em nada aos tradicionais de Santa Teresa (que são um capítulo à parte).
O cortejo começou no alto do morro, aos pés de uma imagem de Nossa Senhora da Conceição. Desceu ladeiras, passou pertinho da Pedra do Sal, que tem esse nome porque era por ali que os escravos descarregavam cargas do produto – e hoje funciona como uma imensa plateia de samba (até durante a pandemia, perigosamente). Desfilou ainda pelo Largo de São Francisco da Prainha, que recebeu em 2016 o busto de Mercedes Baptista, primeira bailarina negra do Theatro Municipal.
E voltou a subir, para terminar num grande baile aos pés da santa. No século 17, a devota Maria Dantas construiu ali, no cume, a capela que, mais tarde, daria origem ao Palácio Episcopal, moradia do bispo do Rio de Janeiro. Hoje o prédio abriga o Museu Cartográfico, que tem um raríssimo mapa do Brasil do século 18. A Fortaleza da Conceição é outro ponto que vale a visita. E, se ainda quer mais motivos, Beyoncé e Alicia Keys ajudam mais um pouco no clipe de Put in a love song, gravado no bairro.
A igreja da Candelária
Só o Boi Tolo para me ajudar a transformar a imagem que eu tinha desse lugar, palco do brutal assassinato de oito meninos que moravam na rua. Não devemos apagar esse crime, nunca esclarecido, da memória – mesmo 27 anos depois. Mas foi lindo ver as tristes escadarias tomadas por uma multidão fantasiada às 7h – quem não conhece o Carnaval carioca não imagina que folião que é folião acorda cedo para aproveitar o melhor dos blocos.
Aos poucos, a praça foi sendo tomada pela expectativa de um dos melhores cortejos. Sem rumo: não há uma rota preestabelecida e já houve registro de uma parte do Boi passar por dentro do aeroporto Santos Dumont (?!). Sem hora para acabar: sempre há boatos de integrantes em algum lugar longínquo pela madrugada. O limite é a energia carnavalesca, alegre, cantante e brilhante.
Como o bloco pode se dividir e ir para qualquer lado, acompanhá-lo é, a cada ano, fazer um tour pelo centro do Rio (e até para outros bairros, dependendo do seu preparo físico!). Em 2018, entre uma marchinha e outra, minha atenção foi capturada por essa fachada imponente do que depois descobri ser a sede original do Banco Central do Brasil.
Na Avenida Rio Branco (antiga avenida Central), o prédio faz parte de um complexo que inclui o Theatro Municipal, a Biblioteca Nacional e o Museu Nacional de Belas Artes. De inspiração europeia, são ícones da reforma urbana do prefeito Pereira Passos, no início do século 20.
Em 2019, em outro trajeto, na Avenida Presidente Vargas, a multidão se abaixou toda para encontrar um menino que havia se perdido da mãe, uma das milhares de ambulantes que ajudam a fazer essa imensa festa popular. E essa coordenação, essa empatia em meio aos caos foi um dos momentos mais bonitos que já presenciei. Uma coletividade que faz muita falta nesse enfrentamento torto da pandemia no Brasil. Este post, aliás, sai depois do Carnaval não só porque sofri para rever e selecionar as fotos de uma folia proibida este ano, mas para não correr o risco de incentivar uma festa irresponsável.
E, para que não digam que só vou para o centro no Carnaval, conto que até tentei um tour a pé saindo da Cinelândia. Cheguei a passar pela Escadaria Selaron, mas terminei ensopada, tomando um cafezinho na Confeitaria Colombo. E que privilégio fazer uma pausa num lugar que foi frequentado por Machado de Assis – embora desconfie seriamente, depois da tempestade, de que São Pedro curte mesmo é um bloquinho.
Aterro do Flamengo
Em anos normais (evidentemente 2021 não é um deles), o Carnaval do Rio não começa na sexta antes do feriado – tenho um amigo que diz que o Carnaval carioca começa logo depois do Réveillon. Assim como não termina com a Quarta de Cinzas. E, numa cidade como o Rio, está longe de ficar restrito ao centro (embora seja a minha área preferida). Foi assim que conheci o Caetano Virado, ou melhor, o Aterro do Flamengo, no domingo depois do feriado.
Além de ser perfeito para andar de bike, fazer um piquenique, correr ou simplesmente contemplar a paisagem, o parque foi feito na medida para os blocos. Amplo e plano, é generoso com foliões cansados de ladeiras e que precisa fazer uma pausa na sombra (que não costuma, mas deveria, ter água fresca). Aterrado com a ajuda dos Morros do Santo Antônio e do Castelo (aqueles que já não fazem companhia ao da Conceição), tem paisagismo de Burle Marx, por si só uma atração.
Aquele fevereiro de 2018 foi lindo, ainda mais considerando a situação em que vivemos hoje. E deixou aquele desejo de que a fantasia fosse eterna, como diz a música. E de que a gente possa sair colorido e purpurinado pelas ruas, cantando e dançando como se não houvesse nada mais importante no mundo. Sempre haverá, é claro, mas não faz mal esquecer alguns dias do peso da vida.
Já voltei a todos esses lugares em ocasiões não-carnavalescas. E, de fato, valem a visita. Mas não vejo a hora de repetir meu tour no Rio com blocos.
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