A vida começa aos 60
Conheça IRACEMA GENECCO, que ao fazer 60 anos deu a si mesma o melhor presente de sua história: um mochilão pela Europa
Nos meus 60 anos, achei que merecia um presente especial, e o presente era aquela viagem sempre adiada pelos afazeres, pelas férias curtas e pelo dinheiro pouco. Uma grande viagem: quatro meses fora do Brasil e muitas cidades a conhecer – foram 40 ao fim –, principalmente na Itália e na França. Inspirada pelas andanças da minha filha, que passava uma temporada em Londres, de onde parti, essa seria minha primeira viagem solo, meu primeiro mochilão. Eu estava apreensiva, mas encontrar outras mulheres viajando sozinhas, algo que descobri ser comum na Europa, me tranquilizou. Nem tudo saiu como planejado, mas, para uma mochileira amadora, acho que não tive grandes problemas e encarei como lições os transtornos e as mudanças de rota. Retornei ao Brasil mais confiante, leve de corpo e de alma.
O mochilão resultou ainda num benefício adicional de 4 quilos a menos na balança. Teve muito corre-corre para não perder trens, houve intermináveis escadarias a transpor nas estações de metrô. Eu caminhava quase o dia inteiro. Queria conhecer tudo e tirar o máximo proveito dos lugares por onde passava. Minha estratégia era, ao chegar a alguma cidade, procurar o centro de informações turísticas para pegar mapas e folhetos. Daí perguntava muito e traçava o plano do dia ali mesmo.
De Londres voei a Roma, de onde, com um grupo de amigos de Florianópolis, percorri de carro a Toscana até chegar ao Vêneto. Considero a gênese do meu mochilão a cidade de Peschiera del Garda, à beira do Lago di Garda, a cerca de 30 quilômetros de Verona. Fui lá para visitar Marta, amiga de uma das integrantes do nosso grupo, que aceitou me hospedar por alguns dias.
Peschiera é uma cidade de menos de 10 mil habitantes – a metade deve ser de brasileiros. Estamos por toda parte: nas lojas, nos supermercados, nas lan houses, na faxina das casas. Ali aproveitei para fazer um passeio de barco pelo lago com paradas nas cidadezinhas do entorno. Garda é o maior dos lagos italianos (o “vice” tem o nome enganador de Maggiore) e possui uma paisagem peculiar, com margens planas ao sul e altos penhascos mais ao norte. Ao fundo, montanhas cobertas de neve em contraste com o azul da água e do céu. Vale a pena conhecer ao menos Sirmione, com ruínas de um castelo medieval numa pequena península a que se chega por uma ponte. E Limone, encravada entre as montanhas que mergulham no azul, cenário que me fez pensar o que seria de mim se tivesse nascido ali.
Aquele barco era, para todos os efeitos, a primeira vez que eu viajava completamente desacompanhada. Minha estreia. Vivi algo difícil de definir. Estava num lugar estranho, não conhecia nada, ouvia línguas sem compreendê-las (no italiano eu me viro, mas o barco era uma babel), tudo observava e não podia trocar ideias. Era uma sensação aparentemente hostil, mas no fundo bem boa.
Fiquei quatro dias em Peschiera, tempo suficiente para pensar para onde seguir. Não sou de planejar muito. Do Brasil saí praticamente apenas com passagem, documentos e bagagem. Só fui começar a decidir meu itinerário em Peschiera, com base em simples curiosidade, indicações de amigos, leituras, filmes. Ali passei a fazer reservas de hotéis e trens pela internet.
A partir daquele ponto eu iria andar sempre sozinha, e você pode estar se perguntando se senti medo. Sim, senti. Não de ser roubada ou atacada, mas de ficar perdida, coisa de criança mesmo. Por isso, adotei o sistema de anotar os itinerários num caderno para não ficar abrindo mapas pelas ruas.
Finalmente deixei Peschiera de trem rumo a Milão, cidade que me encantou desde o início, com o Duomo, o Teatro Scala, a Galeria Vittorio Emanuele e o Castelo Sforzesco. De Milão fiz um bate e volta ao Lago Maggiore, tão cheio de gente nos dias de verão. Lá fica a Isola Bella, ilhota rochosa onde está o Palácio Borromeo, cenário barroco de um divertido conto do escritor italiano Gianni Rodari, com seus jardins floridos por onde desfilam pavões brancos. Melhor argumento para conhecer o lugar não havia. Foi um dia espetacular. Almocei ainda na Isola dei Pescatori e voltei à tardinha para Milão com a sensação de missão cumprida: eu havia traçado pela primeira vez meu próprio roteiro, que deu certo.
O aspecto das áreas centrais de muitas cidades europeias me causou má impressão. As ruas estreitas, os prédios antigos mal conservados, o lixo amontoado. Gênova, meu próximo destino, não fugiu desse figurino. Interessante é que jamais me senti insegura nesses ambientes. Reservei um sábado para conhecer Cinque Terre, a menos de duas horas de trem. Pretendia pernoitar em um dos vilarejos e prosseguir até Civitavecchia, de onde tomaria um ferry para a Sardenha. Cagliari, a capital sarda, era a única cidade italiana que pensava desde sempre visitar – contava encontrar ali pistas sobre meus ancestrais (não encontrei). Mas tudo mudou. Por causa de uma greve de trens marcada para a noite daquele sábado, ao chegar a Cinque Terre mal parei: se não fosse logo a Civitavecchia poderia ser surpreendida pela greve e perderia o ferry.
Em Civitavecchia, peguei um táxi e segui para o porto, onde – ufa! – consegui embarcar na última nave, que já partia. Dei sorte, mas tive de correr, arrastando a mala pelo cais. Fechei aquele dia tumultuado com um bom sono, cabine individual e banho.
Cheguei a Cagliari após quase 15 horas de viagem, num domingo pela manhã, dia em que não há nada aberto na Itália, até mesmo um reles centro de informações turísticas. Enquanto via os demais passageiros se afastando do cais, permaneci ali, parada, com minha mala, sem saber aonde ir. Abordei o primeiro taxista que encontrei e – sorte – ele me levou a um bed and breakfast encantador, com preço acessível, em pleno centro histórico.
Fiquei na cidade por uma semana. Conheci pessoas do lugar e me ambientei com o modo de vida local. Palmilhei as ruas estreitas, provei muitos peixes e frutos do mar. Fui à praia, a Spiaggia Del Poetto, uma das tantas de areias brancas e águas cristalinas da Sardenha.
Tenho facilidade para conversar e assim recebia preciosas sugestões de pessoas comuns sobre suas cidades. E fui muito bem tratada sempre. É preciso dizer que entrar sozinha para jantar em um restaurante na Itália, ao menos nos lugares onde estive, atrai quase todos os olhares e é garantia de tratamento vip por parte dos garçons. E os italianos não economizam nos galanteios.
Ao deixar Cagliari, tomei outro navio, dessa vez para a Sicília. Rachei a cabine com mais três italianas, Stella, Marcela e Sara, excelentes (e falantes) companheiras. O sul é uma outra Itália, mais empobrecida, mas extremamente receptiva ao turista. Na Sicília, fui a Agrigento, Catânia e Siracusa, mas o melhor foi ter conhecido Elke, não uma cidade, mas a turista alemã com quem puxei conversa em um ônibus. Por sua sugestão acabei trocando um passeio ao Vulcão Etna e à cidade de Taormina por uma imersão em Tropea, na Calábria
Eu ia traçando assim meus passos futuros, ao sabor das opiniões das pessoas que conhecia. Meu roteiro era aberto, maleável, nunca definitivo. Caso não gostasse de uma parada, seguia adiante. Na hora de deixar a Sicília, achei muito curiosa a travessia do Estreito de Messina, que separa a “Bota” da ilha. O trem embarca num navio com toda a sua carga e passageiros. Uma vez do outro lado, volta aos trilhos e prossegue a viagem. Já é Calábria
E foi em Tropea, a dica da Elke, que encontrei o lugar perfeito para descanso e imersão na cultura local. Permaneci por 15 dias em um antigo mosteiro, num quarto com terraço e vista panorâmica para o mar. Ele não é aberto aos turistas, mas, com uma indicação, você pode ser recebida pelas feiras (caso queira, eu fale com elas). Ali tive minha temporada de praias, convivi com os demais hóspedes e com eles conheci outros vilarejos da Calábria, em passeios curtos e divertidos.
Eu ainda passaria por muitas cidades antes de voltar a Cinque Terre, que havia “pulado” por causa daquela greve dos ferroviários. Cinque Terre é o nome dado àqueles cinco vilarejos interligados por uma rede de sendas nas escarpas da Costa da Ligúria. A trilha famosa é a Via dell’Amore (Caminho do Amor), em parte talhada nas rochas, entre Riomaggiore e Manarola.
De Manarola, segui de trem até Corniglia, aonde se chega depois de escalar mais de 382 degraus (sim, eu os escalei). Dali passei ainda por Vernazza e Monterosso al Mare. O percurso a pé de um vilarejo a outro pode levar até duas horas. De trem, dez minutos. Posso assegurar que percorri um dos mais belos itinerários da minha viagem inteira.
De volta a Gênova, pretendia dormir e embarcar cedo na manhã seguinte para a ilha fancesa de Córsega, mas seria traída pelo despertador, que não tocou. Protagonizei cenas cômicas correndo pelas ruas até o porto, desesperada, indo e voltando, pedindo informações sobre como chegar ao embarque.
Consegui identificar a nave, mas não encontrei a escada de acesso. Finalmente consegui me aproximar, mas os marinheiros já manobravam, e o barco se afastou deixando para trás um rastro de espuma. Acenei, gritei: “Aspettatemi, aspettatemi!” (“Me esperem, me esperem!”), com os olhos cheios de lágrimas.
Desorientada pela perda e pelo prejuízo (a passagem de navio e três noites de hotel na Córsega) e sem nenhum destino planejado, peguei o primeiro trem para San Remo, a cidade do famoso festival. Mas mal saí da estação. Olhei ao redor, não gostei e decidi seguir viagem de trem para Nice, na França.
Ao contrário daquele dia no Lago Maggiore, lá no começo, esse não era meu dia. Enquanto aguardava o trem, tomei um suco num bar, fui ao banheiro e… perdi o tíquete. Aí precisei de novo superar meus próprios recordes em corrida-com-mochila-nas-costas-arrastando- mala. Retornei ao guichê, comprei nova passagem já ouvindo o ruído do trem nos trilhos, voltei à estação e… A-ha! Esse eu peguei.
Fiquei bastante tempo na Itália, mas não precisei de muitas horas em Nice para ser conquistada pela França. Ali fiquei por mais uma semana, aproveitando as facilidades dos trens para conhecer também Cannes, dos famosos festivais de cinema, e o charmoso principado de Mônaco. Mas essa é uma história para uma outra edição.
Iracema reaparecerá nas páginas da VT para relatar a continuação da viagem pela França. Isto é, se der notícias de Teerã, aonde foi para passar duas semanas em fevereiro
Cuidados especiais
As pessoas de mais de 60 anos devem tomar alguns cuidados especiais na hora de sair em viagem – solo ou não. Em relação à saúde, o geriatra Omar Jalul, do Hospital das Clínicas de São Paulo, dá as dicas: “O melhor é sempre passar no médico e fazer um check-up antes de partir, além de adquirir um bom seguro-viagem”, diz. Em distâncias longas de avião ou ônibus, é bom caminhar de hora em hora para se livrar de problemas de circulação. Para evitar trombose, o geriatra recomenda o uso de meia elástica, que impede que pés e pernas fiquem inchados. É preciso também levar medicamentos de uso contínuo junto com a receita, caso seja necessário comprar mais ou mostrar a um médico no local de destino. Se for ficar muito tempo fora, peça ao médico que liste doenças e remédios que podem ser tomados em cada situação, analisando as condições do paciente. O guia Dioclides Lopes, da operadora Explorer Brasil, explica ainda que em grupos com viajantes com mais de 60 anos muitas vezes é necessário fazer mudanças na programação. “É preciso escolher passeios adequados para a idade e com mais tempo do que o habitual para realizar as atividades”, diz. Dioclides conta que muitas vezes se dobra a quantidade de guias por passeio para dar mais atenção a esse tipo de viajante.
Para uma viagem segura, deve-se também redobrar a atenção em certas situações, já que idosos podem ser vistos como mais vulneráveis. “Fique atento aos pertences e objetos de valor, como máquinas fotográficas, principalmente perto de pontos turísticos, que são mais visados”, diz Fernanda Miyashiroma, gerente de turismo da operadora CI, especialista em mochilão. Ela recomenda ainda usar o bom senso e não carregar muito dinheiro, apenas a quantia necessária para os gastos do dia. E evitar lugares ermos durante a noite. (BETINA NEVES)
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