Córsega: praias e vilarejos da ilha de Napoleão
Mar com mil tons de azul, montanhas, cachoeiras, cidadelas medievais. Maravilha do Mediterrâneo, a Córsega é mais do que a terra que viu nascer Napoleão
Os franceses costumam dizer que têm um Caribe próprio a menos de duas horas de voo, mas não procede mal quem duvida do discernimento gaulês em relação ao tema “praia”. Não foi preciso muito tempo na Córsega, entretanto, para que eu concordasse alegremente com eles. Recém-chegada à cidade de Ajaccio, a capital dessa ilha e província francesa mais conhecida por ser a terra de Napoleão Bonaparte, segui o conselho do dono do camping em que me hospedava para conhecer Mare et Sole, praia a 28 quilômetros dali, na região de Porticcio. Fui sem expectativas, pois não havia lido uma linha que fosse sobre o lugar. Ao ver aquele mar azul e aquela areia branquinha, pensei que tinha achado a praia da minha vida.
Na água, duas crianças francesas brincavam, e a pergunta que uma fez à outra ficou gravada na memória: “Juliette, você sente a água a entrar na sua pele?” Se fosse Juliette, eu diria que sentia a água azul a me engolir, como se quisesse me manter para sempre ali. Um sempre que durou duas horas, entre banhos demorados, caminhadas e uma bela lagarteada na areia.
A Praia de Santa Giulia, na Córsega – Foto: Marco Bari
Depois disso, entender o apelido “Ilha da Beleza” dado à Córsega foi um nada. A 400 quilômetros de Marselha e com área quase 20 vezes maior que a ilha de Florianópolis, a Córsega é possessão francesa desde que Luís XV invadiu o território, em 1769, dando fim à breve república corsa. Persiste certo sentimento separatista, expresso nos rabiscos sobre as palavras em francês das placas de rua, ainda que apenas uma fração da população seja realmente a favor da independência.
Escolhi viajar à francesa: de carro e me hospedando em campings. No país, os campings são estrelados e muitas vezes oferecem luxos que não são encontrados em hotéis, como sauna e piscina, academia, sala de jogos e minigolfe. Famílias que decidem passar muitos dias no mesmo lugar costumam montar um acampamento que inclui geladeira, mesas, fogão e até micro-ondas.
Corso furioso
A melhor maneira de se locomover na Córsega é em um carro alugado. O transporte público é muito limitado e não leva aos cantos mais bacanas. A ilha também é conectada por trem, mas as viagens são demoradas (de Calvi a Ajaccio, por exemplo, são cinco horas), e não há acesso a diversas praias interessantes. Porém, redobre a atenção ao volante, pois, além de as estradas serem muito sinuosas, os moradores são adeptos da direção ofensiva e não têm paciência com turistas prudentes. Se você der o azar de ter um corso furioso na sua traseira, ligue a seta, encoste e aproveite para contemplar mais uma vez a paisagem, que beleza nunca é demais.
A Place Foch, a rua principal de Ajaccio, na Córsega – Foto: Barry Winiker / Getty Images
Ajaccio, porta de entrada da Córsega, não vai fazer você esquecer que ali nasceu Napoleão. O imperador dá nome ao aeroporto e a algumas ruas da cidade, e sua fisionomia fulgura em diversas estátuas. A casa onde ele viveu até os 9 anos de idade é hoje o Musée National de La Maison Bonaparte, onde estão guardados objetos e até uma mecha de seus cabelos. Mais interessante é o Palais Fesch, que tem a maior coleção de pintura italiana na França, Louvre à parte. O cardeal Fesch, tio materno de Napoleão, deu início à coleção, que foi doada à cidade após sua morte, em 1827.
Mas eu ainda precisava ver o tal Caribe francês em sua plenitude, e tomei rumo sul. Dirigindo, descobri que os corsos não eram os únicos “inimigos” a evitar. Animais também invadem as pistas. E dá-lhe vacas, cabras e principalmente porcos, que são criados soltos, alimentando-se de castanhas e, no final do ciclo, dando origem às deliciosas salsichas vendidas em muitos lugares da Córsega. Não é recomendável chegar perto dos bichos. Aproximei-me de uma cabra com minha câmera, mas ela veio danada em minha direção. Minha biografia hoje ostenta o fato de ter sido corrida por uma cabra corsa.
Parei o carro em Bonifacio, no extremo sul da ilha, que é separada por um braço de mar do norte da Sardenha. Se você visitar a Córsega no verão europeu, vai ter de disputar Bonifacio a tapa com outros turistas, mas o lugar é um must go. Sua cidadela, a cidade murada construída no tempo da dominação genovesa, se espalha pelo alto das falésias de calcário branco, uma linda imagem que revela aqui uma felicíssima intervenção do engenho humano na natureza. O passeio de barco até as desabitadas Ilhas Lavezzi, ótimo local para mergulho de snorkel, permite uma visão privilegiada da cidadela. É possível também contemplá-la na caminhada até o Farol de Pertusato, uma pernada de três horas.
A vista do Mediterrâneo desde as escarpas de Bonifacio, na Córsega – Foto: Marco Bari
Bem perto de Bonifacio, já na região de Porto Vecchio, o Caribe falou salut mais uma vez. Palombaggia, praia com mar azul-turquesa e árvores fazendo sombra na sua areia branca de talco, é digna de uma antologia de postais praianos. O mar morno e sem ondas tem ainda a vantagem de ser muito apropriado para quem viaja com crianças. Ali perto também vale a pena passar por Santa Giulia, com águas que impressionam pelo tom cristalino.
Se você se cansar das praias corsas, uma hipótese que eu considero bastante improvável, há toda uma região montanhosa respeitável a ser conhecida. A Córsega tem a maior altitude média das ilhas mediterrâneas, e seu pico culminante, o Monte Cinto, está a 2 706 metros de altitude. Como plus na paisagem montanhosa, as trilhas bem sinalizadas pelas colinas passam por diversas cachoeiras. A GR20, com seus 180 quilômetros, é considerada a trilha mais difícil de toda a Europa. Eu não tinha as duas semanas nem a disposição exigidas para encará-la, mas me aventurei por outros percursos menores, como a trilha dos Gorges de Tavignano, a uma hora de Corte, que leva a dezenas de cachoeiras de águas limpíssimas – e muito geladas. Só o trecho de ida pode demorar cerca de cinco horas para ser vencido, mas, se reservados previamente, abrigos muito rústicos podem ser usados por quem preferir passar a noite nas montanhas.
Vista do Monte Cinto, na Córsega – Foto: Peter Bowater / Alamy / Glow Images
Corte republicana
Bem no centro da área montanhosa da Córsega está Corte, cidade que se tornou capital da fugaz república corsa em 1755, durante a liderança de Pascoal Paoli, herói da independência contra os genoveses. Corte tem a única das seis cidadelas corsas longe do litoral. Suas construções de pedra e suas casinhas encarapitadas em colinas fazem qualquer fotógrafo amador parecer o mais talentoso dos profissionais. Em Calacuccia, a 26 quiômetros de lá, comi a melhor carne de javali da minha vida no U Valduniellu, pequeno restaurante com uma varanda notável e um menu daqueles que dificultam a escolha. Mesmo com o acerto da decisão, confesso que fiquei de butuca no confit de canard da mesa vizinha.
A oeste de Corte, Porto é outra gema litorânea, orgulhosa de sua torre genovesa e, principalmente, da proximidade com os Calanques de Piana, uma região de penhascos verticais de origem vulcânica cuja beleza lhe valeu a inscrição na lista dos Patrimônios Naturais Mundiais da Unesco. É possível estacionar em pontos estratégicos para vê-los, mas gostoso é dirigir pela estrada quase invadida por tantas pedras – as rodovias corsas são mesmo agitadas.
As casas encarapitadas de Corte, na Córsega – Foto: Superstock / Keystone Brasil
Difícil dizer que a porta de saída de um destino do qual não se quer sair de jeito nenhum seja agradável, mas Calvi, de onde partem ferries para Nice e para a italiana Savona, é definitivamente muito agradável. Os iates dos jet-setters ancorados em sua marina podem até ofuscar o brilho de sua cidadela medieval. Mas há muito que ver ali. As muralhas imponentes encerram, entre outros edifícios, a Catedral de São João Batista, muito visitada por causa da imagem do Cristo dos Milagres, a quem se credita a defesa da cidade contra uma invasão sarracena no século 16.
A última e deliciosa cerveja que tomei em Calvi, a Pietra, à base da mesma castanha que alimenta os porcos das estradas corsas, acabou por deixar um travo amargo em minha garganta. Afinal, já era hora de deixar a Córsega, já era hora de deixar aquele pequeno idílio mediterrâneo de tantas histórias e de tantas e belas paisagens. Chegava a hora de finalmente deixar o Caribe.
Veja as melhores opções de voos para a França