Dicas para você viajar de trem na Provence, sul da França
Um roteiro completo para você comprar suas passagens de trem e conhecer as paisagens de Provence, na França. Dá para ir de TGV ou de TER!
Em algum lugar entre a Provence e a Côte d’Azur, as colinas ganham um tom acobreado. Então, um pouco antes de Cannes, o azulão do Mediterrâneo ganha o horizonte, pontilhado com iates colossais. A caminho de Bordeaux, aparecem vinhedos, fazendinhas, ovelhas felpudas.
Viajar de trem entre o sul e o sudoeste da França é a sua única chance de não desperdiçar nacos preciosos desse pedaço glorioso da Europa. Conectados por uma das redes ferroviárias mais abrangentes do mundo, os balneários da Côte d’Azur, as cidades mais imponentes da Provence e o mondo vino de Bordeaux são três roteiros sob medida para fazer de trem.
As linhas regionais (TER) funcionam como um metrozão intermunicipal e não exigem reserva. Cinco dias são o tempo mínimo para rodar por cada uma das regiões, que podem ser amarradas entre si pelas rotas do TGV (de alta velocidade) e do Intercités (de longa distância). Sim, dá pra esticar as pernas. Sim, a sua mala chega com você. E, sim, dá pra degustar vinhos sem neuras por ter de dirigir depois.
O que fazer na região de Provence
Com o TGV (o trem-bala francês) ou com o TER (as linhas regionais), dá pra rodar entre os hits Avignon, Nîmes, Arles e Aix-en-Provence. Para explorar com calma os arredores dessas cidades, é só pegar um ônibus.
Para sentir-se provençal, você precisa, antes de mais nada, de uma boa sacola e do quarteto linguístico essencial de todo e qualquer contato humano na França: bonjour, si’l vous plaît, merci e au revoir.
Munido desses itens, dirija-se à principal feira matinal de Aix-en-Provence (às terças, quintas e sábados entre as places la Madeleine e des Prêcheurs) e apanhe alcachofras do tamanho de bolas de vôlei, moranguinhos delicados e rosados, melões que parecem açucarados e os tomates mais vermelhos que a crosta terrestre já produziu.
+ A delícia de alugar um apê na Provence
Será impossível resistir a dois ou três tipos de queijo e a um potinho fofo de confiture artisanale de figos. E mais: tapenade, azeitonas a granel, mel de lavanda, foie gras.
No cantinho da feira reservado aos badulaques, descole cumbuquinhas charmosas de cerâmica, chapéus panamá e mantas de algodão. Sacola lotada, é hora de tomar o rumo de “casa”, arrematando uma baguete e uma garrafa de rosé Côtes de Provence pelo caminho.
Distribua tudo isso sobre uma mesinha ao sol, no terraço de um apartamento alugado por uns dias. Voilà: você está perto de entender o espírito da coisa.
Queijos de Provence, no sul da FrançaOs queijos dos mercados de rua: irresistíveis
Sul da França sem fronteiras
Dentro da região administrativa Provence, Alpes e Côte d’Azur, o território que se conhece simplesmente como Provence tem fronteiras abstratas e muito facetadas.
O sistema ferroviário não chega aos famosos campos de lavanda ou aos vilarejos do Luberon, exaltados nos célebres livros de Peter Mayle – que são os melhores representantes da graça rústica da região.
Mas a vertente mais monumental das maiores cidades dessa parte ensolarada do sul do país, vinculada ao glorioso passado romano, está facilmente ao alcance de quem viaja de trem. Seja com o TGV (o trem-bala francês) ou com os vagões convencionais, dá pra rodar entre os hits Nîmes, Avignon e Arles, e ainda desembocar em Aix-en-Provence.
A logística ferroviária pode não ser tão simples quanto na vizinha Cote d’Azur, onde basta ir até a estação e esperar o próximo comboio, sem risco de errar. Mas, estudando um pouquinho o mapa para entender como essas cidades estão entrelaçadas, a viagem flui que é uma beleza.
Se a ideia é estabelecer uma base para viagens curtinhas de bate e volta, Avignon é a solução mais prática.
Ela foi o Vaticano do século 14 e, como sede papal, tornou-se um dos lugares mais importantes da Europa na época. À beira do Ródano, sobre o qual se lança a magnífica ponte Saint-Bénézet, do século 12, a cidade tem como principal atração o Palais des Papes, o maior palácio gótico da Europa e inequívoca demonstração de poder da Igreja Católica.
Em julho, a cidade ferve com o Festival d’Avignon, que dá vida às ruas medievais com apresentações teatrais que envolvem mais de 3 500 artistas.
Os arredores de Avignon também guardam boas surpresas. Com o ônibus da linha 2.2 (25 min), chega-se facilmente a Châteauneuf-du-Pape, vilarejo que produz um dos vinhos mais respeitados da França.
Com os ônibus Edgard, dá pra ir até a Pont du Gard (40 min), uma das principais peças do legado do Império Romano na Provence, sobre o rio Gard.
A melhor ideia é aproveitar o passeio para fazer um piquenique com vista para a ponte de 275 metros de extensão e 49 de altura, que era parte de um aqueduto de 50 quilômetros de extensão.
Pont du Gard, Uzès e Nîmes, FrançaA Pont du Gard, entre Avignon e Nîmes, é cenário perfeito para um piquenique
Nîmes, outra nobre vizinha de Avignon, está a apenas meia hora de trem regional. Sua atração incontornável é o anfiteatro romano mais bem-conservado da Europa, que, ali pelo ano 100, tinha capacidade para 24 mil espectadores. Uma exposição lá dentro conta detalhes interessantíssimos do cotidiano dos gladiadores e a história do lugar.
A imersão na Nîmes romana continua com La Maison Carée, templo de mais de 2 000 anos impecavelmente conservado, que faz um bonito contraste com o caixote de aço e vidro do Museu de Arte Contemporânea, assinado pelo arquiteto britânico Norman Foster.
Charmosa e despretensiosa, Nîmes tem cafés agradáveis, lojinhas espertas e bons restaurantes – incluindo o Alexandre, QG do chef Michel Kayser, premiado com duas estrelas Michelin.
Às margens do rio Ródano, e a menos de 20 minutos de Avignon, também pelo trem regional, Arles guarda outra joia do legado romano: um anfiteatro de colunas delicadas, erguido no final do século 1.
Mas é o seu casario em tons pastel, junto com uma vocação artística atávica, que dá tanto charme a essa cidade que teve o espanhol Pablo Picasso, o francês Paul Gauguin e, sobretudo, Vincent Van Gogh entre seus fãs. Seguir os passos do pintor holandês em Arles é uma das formas mais inspiradoras de conhecê-la.
A passagem de Van Gogh por ali, entre 1888 e 1889, foi fugaz, mas a temporada de pouco mais de um ano bastou para que ele pintasse 300 telas e, num surto de loucura, cortasse o lóbulo de sua orelha esquerda após uma briga com Gauguin (há quem diga que o próprio francês poderia ter se encarregado de decepá-la…).
O mapa com os lugares vinculados à presença do pintor em Arles é distribuído pelo escritório local de turismo e indica pontos como as arcadas do hospital onde ele se recuperou do mítico incidente, retratadas por ele numa série de quadros.
Ruela da cidade de Arles, no sul da FrançaUma das ruazinhas com casas em tons pastéis de Arles
A conexão entre Avignon e Aix-en-Provence é um vapt-vupt de 20 minutos via TGV, o que teoricamente torna o passeio também viável para um pulinho de um dia.
A questão é que as estações pelas quais passa o trem de alta velocidade ficam longe do Centro, tanto em Avignon (6 quilômetros) quanto em Aix-en-Provence (18 quilômetros), o que acrescenta duas viagens de ônibus ou táxi (que em Aix sai por € 40!) a cada perna do trajeto. O melhor a fazer, portanto: arrumar as malas e, uma vez instalado em Aix, curtir a cidade com a calma que ela merece.
Por ali está a prova cabal: sentir-se provençal por uns dias não é utópico. Pelo preço de um hotel três-estrelas (e olhe lá), € 70 ao dia, aluguei um apezinho no Centro de Aix-en-Provence em plena primavera, sobre uma pracinha animada por um bar de vinhos e uma casa de chás.
Numa cidade em que a acomodação é ainda mais cara do que a ácida média fancesa – e onde os pequenos prazeres do cotidiano estão entre as principais atrações –, vale, mais do que nunca, apostar no fenômeno Airbnb. Simone, a simpática proprietária, me recebeu com frutas, pão e flores frescas e, sem complicações, entregou a chave de minha pequena imersão na região.
Tive ainda mais certeza de que vale dedicar um tempo maior a respirar o ar da cidade quando, do terracinho do meu apê alugado, na cobertura de um edifício de cinco andares, avistei o topo da montanha de Sainte-Victoire.
Montanha Sainte-Victoire, que inspirou Paul Cézzane, em Aix-en-Provence, no sul da FrançaPaul Cézanne tinha inspiração de sobra
Com seu semblante pedregoso, ela serviu de inspiração para Paul Cézanne, aixoise da gema, que a retratou obsessivamente em 444 óleos e 43 aquarelas, entre o século 19 e o início do 20.
Plaquinhas de bronze com a letra C enfeitam discretamente as ruas da cidade e indicam os lugares que significaram algo na vida do pintor.
Fazem parte dessa rota biográfica desde o edifício onde ele nasceu, no número 29 da Rue de L’Opera, passando pelo Café des Deux Garçons, um clássico local ainda vivo onde ele se reunia com os amigos no Cours Mirabeau, a avenida mais majestosa do Centro, até o Musée Granet, que guarda o famoso quadro Les Grandes Baigneuses, entre outras nove obras.
De todas, a parada que mais exala a presença do pintor é o Atelier Cézanne, que foi mantido tal qual ele o deixou, com seus objetos pessoais, cavaletes, tintas e pincéis. Pertinho de lá, uma caminhada agradável ladeira acima conduz à praça de onde, muitas vezes, ele enxergou a sua – e agora um pouco minha também – Sainte-Victoire.
Revista Viagem e Turismo — junho de 2014 — edição 224