Fragmentos de Indochina

O melhor do trio Camboja, Laos e Vietnã em diferentes recortes. Passeios de bicicleta, aulas de culinária, visitas a tribos, templos, santuários

Por Rachel Verano
Atualizado em 7 Maio 2024, 15h52 - Publicado em 9 fev 2012, 15h33

O fim de tarde seguia poeirento às margens do rio que corta o centro de Siem Reap, no Camboja. Dentro de um templo, os monges estavam ansiosos para praticar inglês. “What are you talking about?”, nos interromperam. Eram garotos de 20 e poucos anos e sorriso largo. Era também a nossa estreia na península do Sudeste Asiático que ficou conhecida como Indochina – região onde a França estabeleceu colônia no século 19, hoje formada por Camboja, Laos e Vietnã.

Guia VT: Indochina – hotéis, restaurantes e atrações

Quiseram saber de onde viemos, para onde vamos, por que temos tatuagens, se não somos gângsteres. Quando indagamos sobre os vizinhos templos de Angkor, ficaram mudos por segundos até que Peron, o mais alto deles, ousou uma resposta: “It’s… It’s fantaaastic!”, disse ele, emocionado. Só pudemos compreender o que ele tentava explicar no dia seguinte, ao ver o sol nascer atrás das torres mágicas de Angkor Wat.

Os templos da antiga capital do Império Khmer entre os séculos 9 e 13 são apenas algumas das surpresas desses três países. Frequentemente visitados em uma mesma viagem, eles têm em comum um triste histórico de guerras, um rio que desenha belas paisagens por onde passa (o lendário Mekong) e uma sede de mostrar para o mundo o que o passado recente escondeu: construções grandiosas, tribos exóticas, uma culinária deliciosa e todo o fascínio que só o Oriente é capaz de provocar em nós, ocidentais. Ao longo de dois meses, embarcamos na carona de motos, em tuk-tuks, bikes, barcos, ônibus. E voltamos para casa com receitas, sedas e o inesquecível sabor de mangostim na memória.

Ciclista na ponte de Angkor Thom, no Camboja Ciclista na ponte de Angkor Thom, no Camboja

CAMBOJA

De bicicleta pelos templos de Angkor

Mal amanhece o dia e a estradinha estreita que liga o centro de Siem Reap ao complexo dos Templos de Angkor (passe de um dia, US$ 20; três dias, US$ 40; uma semana, US$ 60) se transforma no palco de uma verdadeira peregrinação que não cessará até que a noite caia. Tuk-tuks, motos, pedestres, vans, todos têm como destino o maior templo religioso já erguido pelas mãos do homem: Angkor Wat, a primeira e mais famosa construção da área arqueológica que se apresenta à multidão vinda da cidade. De bicicleta (alugada por US$ 2 a diária), com a brisa da manhã ainda fria no rosto, dá para sentir a ansiedade daquele vai e vem. Meia hora e 7 quilômetros depois, Angkor Wat desponta no horizonte com suas cinco torres escoltadas por lagos com delicadas flores de lótus. É logo atrás delas que o sol nasce imenso e dourado.

Vencer o labirinto de caminhos de terra batida pode não ser muito animador do ponto de vista quantitativo – trata-se, afinal, de uma área de cerca de 1 000 quilômetros quadrados recheada de florestas. Mas só assim se tem a real dimensão da região e algumas das melhores surpresas: uma nesga que revela um elefante no meio da folhagem aqui, os detalhes de uma escultura ali, o sorriso dos meninos vendedores de mangas. E, se não dá para ir muito longe, o alento é que os templos top 3 estão relativamente perto uns dos outros.

Poucos minutos de pedalada além de Angkor Wat e uma ponte cercada de esculturas de pedra dá as boas-vindas à cidadela de Angkor Thom, cercada por 12 quilômetros de muralhas. Do lado de dentro, bem no centro, ergue-se Bayon, também conhecido como “templo das 216 faces”. A saída pela porta leste leva a uma estradinha ainda mais estreita, e quem segue sempre à direita chega a Ta Phrom, onde as raízes das árvores se fundiram de maneira impressionante às paredes de pedra. Depois de vermos tudo sem pressa, o sol já ameaçava se esconder. A volta a Siem Reap foi iluminada apenas pela luz da Lua, que, por pura sorte de principiante, estava cheia naquela noite de fim de verão.

Continua após a publicidade

Phnom Penh: uma triste aula de história

O Camboja tem uma das histórias recentes mais tristes do mundo. Entre 1975 e 1979, o país foi governado pelo Khmer Vermelho, facção que se revelou extremamente violenta por trás de uma fachada ideológica comunista e que foi responsável pelo genocídio de algo entre 1 milhão e 3 milhões de pessoas.

O ano de 1975 foi batizado de “ano zero” quando os experimentos de Pol Pot, o grande líder, tiveram início. O dinheiro foi abolido, as cidades foram evacuadas, e todas as pessoas que detinham qualquer tipo de conhecimento foram sumariamente executadas.

Phnom Penh, a capital de 1,5 milhão de habitantes, ainda exibe memórias desse passado abominável na Phlauv (rua) 113, em frente ao número 50, hoje Museu Tuol Sleng (US$ 2). Ali, os edifícios de uma antiga escola foram transformados no mais sangrento quartel-general do Khmer Vermelho, a chamada S-21. As salas exibem ao mesmo tempo os instrumentos de tortura e os velhos quadros-negros. As celas seguem de pé no interior do edifício C. Fotos de centenas de prisioneiros são exibidas nas paredes – alguns sorrindo inocentemente, outros com um olhar que pedia socorro. São eles os donos dos crânios exibidos a 14 quilômetros de distância dali, nos Campos de Concentração de Choeung Ek (14 km ao sul da cidade; US$ 5), para onde eram levados os prisioneiros da S-21. Uma visita tão desconcertante quanto obrigatória, que faz o caos se transformar em silêncio e o ar subitamente parecer mais denso.

Laos Laos

LAOS

Luang Prabang ao amanhecer

São 5 e meia da madrugada. Ainda faz frio quando as ruas da pequena Luang Prabang, uma cidadezinha de cerca de 50 mil habitantes com ares de vilarejo na porção norte do Laos, começam a despertar lentamente. Pouco a pouco os moradores ocupam seus lugares nas calçadas das ruas principais, forradas de esteiras, e esperam. Nós também esperamos. De repente, um mar de cor enche de vida as fachadas coloridas e ao mesmo tempo desbotadas de traços franceses da ex-colônia. Centenas de monges em trajes cor de laranja, descalços e em fila indiana, começam uma peregrinação que vai durar quase uma hora, enquanto os moradores da cidade oferecem comida a eles. Geralmente um arroz grudento e delicioso que é a base da alimentação no país (chamado de sticky rice). O nome do ritual budista que se repete há anos diariamente é tão bonito e emocionante quanto ele: Ronda das Almas. Luang Prabang amanhece em paz todos os dias.

Continua após a publicidade

Luang Prabang ao entardecer

De um lado corre o mítico Mekong, o mais famoso rio do Sudeste Asiático. Do outro, o Rio Khan. Bem no meio deles surge a cidade de apenas duas ruas principais que ainda anda no ritmo lento das bicicletas, que as invadem invariavelmente do nascer ao pôr do sol. Fazia um fim de tarde dourado quando passamos pela minúscula Rua Wisunarat, e paramos enfeitiçados por uma música que vinha de um canto qualquer. Perseguimos o som por alguns longos minutos e de repente deparamos com um grupo de jovens monges entoando cânticos para uma imensa imagem de Buda, ao lado do templo mais antigo da cidade, erguido no ano de 1503, cujo pátio exibe uma impressionante estupa, um monumento em forma de flor de lótus. Luang Prabang anoitece em paz todos os dias.

Vietnã Vietnã

VIETNÃ

24 horas em Ho Chi Minh City

Ho Chi Minh City, ou HCMC, para os íntimos, foi um caso de amor à primeira mordida. Tão logo desembarcamos do ônibus vindo do Camboja fomos apresentados a coisas de texturas estranhas, aparência desconhecida e nomes impronunciáveis. Estávamos sentados nuns banquinhos de plástico no Mercado Ben Thanh (interseção das ruas Le Loi, Ham Nghi e Tran Hung Dao). Gelatinas com camarões, carnes enroladas em pedaços de cana, noodles com terrines de sabe-se lá o quê, rolinhos molengas de massa transparente. Pronto. Duas horas depois da chegada, o Vietnã ganhava ali mesmo o troféu de melhor comida da viagem. E nós ganhávamos energia para começar a desbravar a cidade numa contagem regressiva das 22 horas que nos restavam.

HCMC tem seu bairro de arranha-céus modernos, suas lojas de grandes grifes europeias, seus restaurantes estrelados. Mas, antes de se aventurar em sua porção futuro, é preciso conhecer sua porção passado. A Guerra do Vietnã é narrada de maneira didática no Museu dos Remanescentes da Guerra (Bao Tang Chung Tich Chien Tranh, 28 D Vo Van Tan, 8/3930-6235; US$ 0,75), onde estão expostos de tanques e aviões a armamentos e fotos dramáticas do conflito. Também é possível visitar por dentro o Palácio da Reunificação (Nguyen Du, 106; US$ 1,50), onde foi selada a queda de Saigon – antigo nome da cidade –, dando fim à guerra, em 1975. Caminhar pelo centro histórico é uma experiência antropológica: a sensação é a de que os 6 milhões de habitantes da cidade estão todos nas ruas pilotando loucamente suas motos ao mesmo tempo. Mais cedo ou mais tarde, outros dois postais imperdíveis vão aparecer pelo caminho: a Catedral de Notre-Dame (interseção das ruas Dong Khoi e Nguyen), erguida no final do século 19, e a Pagoda do Imperador Jade (Mai Thi Luu, 73), recheada de figuras divinas e considerada um dos mais belos templos chineses do país

Entre panelas e caçarolas em Hoi An

Nguyen Ngoc Thong, ou Mr. Thi, para facilitar a pronúncia e evitar os cinco acentos que os teclados ocidentais não são capazes de digitar, tem 25 anos. Vive com os pais e os três irmãos numa casa “muuuito pobre” às margens do Rio Thu Bon. As enchentes, comuns durante a época das monções, muitas vezes os obrigam a mudar de endereço – como no terrível novembro de 2007, quando tiveram de viver durante meses em um barco. Perder tudo é fato corriqueiro. Assim como começar de novo.

Continua após a publicidade

Mr. Thi foi o nosso guia numa excursão pelo mercado de Hoi An nas primeiras horas da manhã. Ele se virou bem tanto em inglês quanto na identificação das frutas, ervas e verduras locais (o que não é pouco). Soltava pérolas vez ou outra: “O pomelo ajuda a aumentar a barriga, fundamental para os homens que querem fazer sucesso com as mulheres”. Algumas horas mais tarde, seguimos de barco até a sede da Red Bridge Cooking School (Thon 4, 510/393-3222; cursos desde US$ 27) para colocar todo aquele conhecimento em prática. Pho (sopa de noodles). Wonton (espécie de panquequinha fita crocante). Banh uot (“papel” de arroz fresco). Nem (rolinho primavera). Depois de provar tudo o que você mesmo preparou, a tarde pode ser embalada com uma sesta às margens da piscina da escola.

Relaxem!

“Vamos agora!” A ordem, bradada pouco depois das 7h30 da manhã por um vietnamita baixinho, nos fez questionar se, afinal, tínhamos comprado um passeio turístico ou um tíquete do tipo “passe um fim de semana com o Exército”. Nunca chegamos a uma conclusão. Já na van a caminho de Halong Bay, a pouco mais de três horas de distância de Hanói, Mr. Nam exigiu a atenção de todos para recitar seus conhecimentos sobre seu país. Os rios, os nomes dos rios, as extensões dos rios, a história. Fomos avisados do fim da palestra com um “Agora durmam!” No barco onde passaríamos a noite passeando por um dos cenários mais bonitos do mundo, no qual pedras emergem abruptamente de águas cor de esmeralda, a tarde seguiu com “Agora comam!”, “Agora tratem de ir para a cabine!”, “Agora visitem as cavernas!” Quando achávamos que não sabíamos fazer mais nada sozinhos, eis que surge Mr. Nam para ajudar. Como preencher o tempo? “Agora relaxem!” E relaxamos, por via das dúvidas. Só não deu mesmo foi fazer frente aos japoneses no karaokê na hora do “Agora cantem”…

Todas as agências de viagens que pipocam por Hanói oferecem o passeio, que pode ser comprado inclusive na recepção da maioria dos hotéis. Uma das melhores alternativas é a Handspan Travel Indochina (Ma May, 78, 4/3926-2828; passeio de dois dias e uma noite em um barco, desde US$ 135).

Contatos imediatos com as tribos do norte

Às 21h50 em ponto o trem SP3 começou a se mover lentamente na plataforma e, depois de passar de raspão por casas, bares e cybercafés, deixou o bulício de Hanói para trás no rastro do Rio Vermelho. Às 5 da madrugada, já com o dia claro, cortávamos as planícies do norte rumo à fronteira da China, onde tudo o que se via eram campos de arroz intermináveis. Chovia. E então chegamos a Lao Cai, a última cidade do Vietnã, ponto final da ferrovia.

Nosso destino era Sapa, um vilarejo de 30 e poucos mil habitantes a 1 650 metros de altitude, acima das nuvens e cercado de montanhas. Desde os tempos da colonização francesa no Vietnã (que durou de 1883 a 1954), Sapa é uma charmosa estância de serra onde faz frio mesmo no auge do verão. Tem restaurantes franceses, padarias francesas e um ar francês sempre que se cobre de uma bruma espessa.

Continua após a publicidade

Mas a razão que leva gente do mundo inteiro até lá são as tribos que vivem em vilarejos espalhados pelas montanhas nos arredores da cidade, onde terraços de arroz encharcados descem o vale em degraus, os socalcos. São tribos de mais de 15 etnias capazes de encher de brilho e de cor as ruas estreitas e os mercados da cidade mesmo em meio às tempestades recorrentes.

Centro de Hanói, no Vietnã Centro de Hanói, no Vietnã

Top 10: centro histórico de Hanói

Hanói é um caos com suas avenidas largas, suas milhares de motocicletas e os 3,5 milhões de habitantes que bebem, comem, vendem de tudo e assistem à TV no meio da rua. Ocupando as margens do Lago Hoam Kiem, o centro histórico é um oásis na deliciosa confusão da cidade grande. Não que seja menos confuso, mas é mais simpático perder-se ali, em ruelas estreitas ladeadas por predinhos antigos e onde becos de artesãos, casas de carnes e oficinas de lápides dividem espaço com cafés charmosos, ótimos restaurantes e bares bacanas que só fecham de madrugada. Há pelo menos dez programas deliciosos (e baratos!) na região:

1 Fazer uma massagem nos andares superiores do Tamarind Café (Ma May, 80; cerca de US$ 7 a hora), à meia-luz e ao som de música clássica.

2 Tomar bia hoi (um tipo de chope fresquíssimo, servido a US$ 0,30) nas mesas baixas com banquinhos de um palmo de altura na esquina das ruas Hang Thung e Hang Tre e ver o trânsito mais surreal do mundo desfilar na sua frente.

Continua após a publicidade

3 Comprar pôsteres da antiga propaganda comunista na lojinha Old Propaganda (Hang Bac, 122; cerca de US$ 8 as unidades pequenas e US$ 30 as grandes).

4 Assistir a um espetáculo no Teatro Municipal de Marionetes Aquáticas(Dinh Tien Hoang, 57B; desde US$ 3), de frente para o lago.

5 Tomar café da manhã no Papa Joe’s (Hai Ba Trung, 49, 4/3936-4597), com panini, milk-shakes e sanduíches deliciosos, por menos de US$ 4.

6 Jantar no Highway 4 (Hang Tre, 3, 4/3926-0639) e provar, além de todas as variedades de rolinhos do cardápio, os deliciosos pratos à base de carne de avestruz.

7 Namorar as lojas de artigos para a casa nos arredores da Catedral de São José (Nha Tho), erguida em estilo neogótico no final do século 19.

8 Fazer uma longa pausa no Templo da Literatura (Quoc Tu Giam; US$ 0,50), um refúgio tranquilo erguido no ano 1070 em homenagem a Confúcio.

9 Comprar camisetas com a bandeira do país ou marcas de cerveja locais nas barraquinhas de rua, por cerca de US$ 2.

10 Bater pernas até não aguentar mais e depois pegar um tuk-tuk de bicicleta de volta para o hotel, por apenas US$ 1.

LEIA MAIS:

Guia VT: Indochina – hotéis, restaurantes e atrações

Leia mais:

Fevereiro de 2012 – Edição 196

 

Adeus ao fantasma da guerra  

 

Unesco elege 30 novos Patrimônios Imateriais da Humanidade

 

Publicidade