“Vocês vão entrar na Índia por Varanasi?”, perguntou Marcel, um amigo que já havia visitado o país. Ao ouvir a nossa resposta, sentenciou: “Boa sorte”. Então ficou mudo como uma rocha e nos legou a responsabilidade de confirmar nossa chegada pela caótica e sagrada cidade cortada pelo Ganges.
Desembarcamos no novíssimo aeroporto de Varanasi exatas duas horas depois de subir no avião em Katmandu. Ao cortarmos a cidade a bordo de um tuk tuk, as buzinas, os coloridos saris e turbantes do povo não se mostraram uma novidade para quem já tinha estado no Nepal. Julgamos, erroneamente, que nosso cartão de visita da Índia seria mais do mesmo. Das cidades sagradas da Índia, Varanasi é a hors concours, a Meca dos hinduístas, que visitam aos montes o lugar para banhar-se no histórico Rio Ganges. Foram três dias perambulando pelos ghats (algo como postos de apoio) ao longo do Ganges, assistindo aos banhos das pessoas, vacas, búfalos. E presenciando também as cremações. Ver alguém ser cremado é uma experiência forte, para dizer o mínimo. E, quando isso se dá em Varanasi, o morto pode ir feliz: para um católico, seria mais ou menos como ter os restos mortais guardados no Vaticano. O Manikarnika é o maior dos dois ghats onde as cremações são permitidas. Ali fogueiras trabalham a céu aberto o dia inteiro. É difícil não se chocar com a crueza da cena no início, mas as crianças jogando críquete ao lado amenizam e dão naturalidade ao evento – morrer faz parte do jogo, certo? Também não nos arrependemos de despencar da cama às 3h30 da madrugada para pegar um barco e assistir de dentro do Ganges aos peregrinos fazendo suas oferendas e preces enquanto o Sol nascia. Pensei que sentiria alívio ao deixar Varanasi, mas, ao contrário, tive a sensação de não ter aproveitado o suficiente da cidade mais caótica em que já coloquei os pés na vida. Caso você queira ir para lá, sugiro esticar até a localidade de Sarnath, onde Sidarta Gautama, a.k.a. Buda, teria feito seu primeiro, digamos, sermão. Caminhe pelas ruínas do mosteiro e veja a linda estupa Dhamek, construída no exato local onde brotaram as doces palavras do doce líder.
Escolhemos o eficiente trem indiano para percorrer os 800 quilômetros que nos separavam da capital do país, Nova Délhi. Ao contrário da experiência anterior na China (para ler a reportagem Guerreiros não dizem não, clique aqui), é tranquilo adquirir os tíquetes nas estações, já que a Índia é ex-colônia britânica. A ideia era economizar uma noite de hotel dormindo no trem, mas adiamos por algumas horas o sono para receber aulas de meditação de um simpático monge italiano em pleno vagão. Depois de cantar o mantra Baba Nam Kevalam por alguns bons minutos, permaneci de olhos fechados mais para fugir dos olhares incrédulos do que por sucesso da prática. E, enquanto nosso guru seguia em transe, capitulamos e decidimos arrumar a cama para dormir.
Chegamos cedo à capital indiana, e o objetivo do dia era encontrar uma agência de turismo que nos vendesse um tour pelo Rajastão. Não qualquer tour, mas um de carro, com motorista particular (e hospedagens mais ou menos, é verdade). Encontramos a agência Saga World Travels com a ajuda do escritório de turismo oficial e fechamos o pacote de 13 dias a US$ 600 por cabeça. Mas, como já havíamos comprado passagens de trem para um bate e volta até Agra, duas horas ao sul de Délhi, o motorista que nos esperasse. Agra é famosa pelo Taj Mahal, a prova concreta e magnífica da mais linda história de amor, como na música de Jorge Ben Jor. Descalços e tentando nos imaginar personagens (um tanto cômicos) dessa história, pisamos o mármore branco do palácio. Uma das Novas Sete Maravilhas do Mundo, o Taj Mahal, você deve saber, foi encomendado pelo imperador Shah Jahan em 1630 para homenagear sua esposa favorita, Mumtaz Mahal, que morreu após dar à luz o 14º filho do casal. O mundo nunca conheceu um mausoléu tão espetacular.
Batizada de Terra de Reis por causa de seus marajás megalomaníacos, a província do Rajastão é o retrato da Índia que vemos em livros e filmes. O primeiro dia do tour nos levaria à capital da região, Jaipur, a Cidade Rosa. O apelido vem da cor rosada de suas construções na área central, onde estão bazares bacanas para comprar bugingangas, o observatório Jantar Mantar e o lindíssimo Palácio da Cidade, usado por uma antiga família real indiana, hoje destituída de qualquer importância política. Amber, a cidade vizinha, nos ofereceu depois a vista maravilhosa de seu forte incrustado no topo de uma montanha – é possível alcançá-lo montado no lombo de um elefante, exatamente como faziam seus antigos moradores. Jaipur também foi a cidade que escolhemos para acompanhar uma sessão de cinema de Bollywood com direito a pipoca, salvas de palmas e gritinhos de adolescentes a todo instante. O cinema veio abaixo quando a mocinha surgiu em câmera lenta, cabelos ao vento, vestindo um comportado biquíni amarelo! E não nos preocupamos em nenhum momento com o idioma porque a verdadeira atração não estava na tela.
Pushkar e Ranakpur seriam as nossas próximas paradas no caminho para Udaipur, 400 quilômetros a sudoeste de Jaipur. Pequena e tranquila, Pushkar nos cativou de imediato com seu lago, sagrado, local onde as cinzas de Gandhi foram atiradas. Também está lá um dos poucos templos dedicados ao deus Brahma, que, ao lado de Vishnu e Shiva, forma a tríade suprema do hinduísmo. Já Ranakpur nos presenteou com a visão do templo mais bonito de toda a viagem, Chaumukha Mandir, erguido no século 15 pelos devotos do jainismo, corrente religiosa que compartilha alguns princípios do hinduísmo e do budismo. É impossível não morrer de amores por seus 1 444 pilares de mármore perfeitamente esculpidos, mandalas e elefantes. Ali também arrematei um tapete, a despeito da minha conta bancária em fangalhos.
Chegamos a Udaipur junto com o pôr do sol e logo entendemos as razões que deram a ela o título de cidade mais romântica da Índia. Tudo que vale ser visitado tem vista privilegiada para o Lago Pichola, como o Palácio da Cidade, o maior e mais belo de todos que visitamos, e a Galeria dos Cristais, com uma extravagante coleção de móveis e objetos cobertos pelo rico material. Para fugir do calor impiedoso, procure uma sombra à margem do lago ou pague 300 rúpias (R$ 11) por um passeio de barco de uma hora até a Ilha Jagmandir.
Desde Udaipur, rumamos 260 quilômetros a noroeste até Jodhpur. A cor da vez era o azul, pintada nas casas para identificar a residência dos antigos brâmanes, a mais elevada casta da hierarquia hindu. Ainda que menos charmosa do que as demais cidades da província, Jodhpur tem um belo forte e um mercado de rua apinhado de bons chás, especiarias e temperos, como o delicioso masala, base de muitos pratos da culinária indiana. Come-se muito bem na Índia, mas você pode ir do sonho ao pesadelo sem escalas. São comuníssimos os casos de turistas acometidos por diarreias (presente!) e intoxicações alimentares, mas dá para sobreviver se você tomar algumas precauções. Passe longe de alimentos crus e evite carnes, bebidas preparadas com água, gelo e, se conseguir, pimenta. A vaca é sagrada e, por razões óbvias, desconfie das condições sanitárias de qualquer restaurante que ofereça sua carne. E lembre-se: muitos anos dedicados ao vegetarianismo fizeram com que a Índia desenvolvesse uma vertente gourmet da filosofia.
Próximo à fonteira com o Paquistão estava o nosso próximo destino: Jaisalmer. Ali teríamos um dia para visitar seu forte, cuja particularidade é ter no interior da muralha um agitado comércio de seus moradores. Jaisalmer é cenário também das deslumbrantes havelis, belíssimas mansões históricas construídas sob clara influência da arquitetônica islâmica. Mas o principal motivo para estarmos ali era o entorno da cidade, onde fica o Deserto Thar. E lá fomos nós subir as dunas do deserto acomodados entre as corcovas de um camelo (colinha: o camelo tem duas; o dromedário é que tem uma). Embora a exploração turística do Thar seja mato, ainda é possível encontrar um lugar tranquilo ali para esperar pelo belíssimo pôr do sol.
Os ratos povoaram meus sonhos, ou pesadelos, na noite que antecedeu à nossa ida a Bikaner, cinco horas de carro a nordeste de Jaisalmer. Explico: é ali que está o templo Karni Mata, a única atração que o Danilo não abria mão de visitar. A lenda que envolve o lugar, muito rapidamente: Karni Mata pediu a Yama, deus da morte, para trazer de volta do mundo das trevas seu filho Lakhan. Yama, um tanto blasé, teria dito então que aquele pedido estava fora de sua alçada, essas coisas que deuses hindus de segunda linha dizem. De qualquer forma, Karni Mata não voltou da conferência de mãos vazias. Muitos de seus parentes ganharam de Yama a eternidade. Não morreriam mais, a partir de então sempre reencarnariam em ratos. Pois ali, naquele palácio, vive toda a descendência de Karni Mata, corporificada em centenas de ratos pretos e gordos, todos aparentemente tratados com carinho e atenção por emocionados indianos. Como se não bastasse, o decoro pede que você adentre o templo descalço. Descalço! A maioria dos turistas, na verdade, usa meias. Eu só cheguei até o pátio, a uma distância civilizada dos roedores. Já o indômito Danilo não passou mais de cinco minutos no templo. Não sei que destino deu ao par de meias.
Do Rajastão retornamos a Nova Délhi, onde nosso simpático motorista seguiu a nos apresentar seu louquíssimo país. Foi Yasin, aliás, quem nos explicou que a Índia moderna dos filmes de Bollywood ainda está distante da realidade. Hindus e muçulmanos seguem arranjando o casamento de seus filhos adolescentes, relegando papel secundário à mulher e, isto não é demérito, resistindo à ocidentalização. Dias depois de nossa saída do país, eu, Danilo e um bom punhado de almas pelo mundo ficamos perplexos com a morte de uma indiana vítima de estupro coletivo num ônibus em Nova Délhi. Com a notícia, veio a triste constatação de que o crime não era um caso isolado, mas quase uma prática comum. Seria uma manifestação da Índia profunda de que falava Yasin ou um reflexo da violência de nossos próprios tempos? Difícil saber.
Em Délhi, visitamos o lindíssimo templo Lótus, a área que abriga a Casa do Presidente, o Parlamento Indiano e o Portão da Índia, e, num outro dia, o enorme Forte Vermelho e o singelo memorial instalado na casa onde Mahatma Gandhi foi assassinado, em 1948. Ainda deu tempo para nos emocionarmos com a música no templo sikh Gurdwara Bangla Sahib e bater pernas pela Rua Main Bazaar Paharganj.
Deixamos Délhi como entramos: de trem. Agora seguíamos rumo a Mumbai, a confusa e populosa cidade do oeste da Índia onde se passa Quem Quer Ser um Milionário?, de Danny Boyle. Os muitos deuses hindus nos premiaram com um grande companheiro de vagão, e as 18 horas de viagem passaram rápido. Vijai, um indiano cinquentão radicado em San Francisco, nos adotou ao saber que éramos brasileiros. “Vocês vão me ajudar a encontrar Daniela, uma carioca que conheci em Rishikesh”, disse entre risos, sabedor da dificuldade da missão.
Além de companhia no trem, Vijai seria o responsável por nos mostrar Mumbai. Convocou seu motorista, e ambos nos levaram a conhecer a Galeria Nacional de Arte Moderna, o histórico terminal Victoria, a Universidade de Mumbai, o hotel Taj Palace, o templo Mahalaxmi e o panorâmico Parque das Crianças. Despedimo-nos em Colaba, o bairro dos moderninhos, não sem antes recusar os convites de Vijai para jantar. Foi uma tarde e tanto, que ainda terminou com a oferta de um olheiro para fazermos figuração em Bollywood. Agora só me resta cumprir a promessa feita ao Vijai e encontrar a Daniela.
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