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O pedal do puma na Patagônia

Ele decidiu não seguir os caminhos triviais e foi parar na Patagônia em uma viagem solitária de bicicleta por longos seis meses

Por Guilherme Cavallari
Atualizado em 14 jul 2021, 21h10 - Publicado em 5 abr 2013, 17h09

Enxergo a vida como uma série de desencontros pontuada por ocasionais encontros. Quando escolhemos viver em determinado país ou cidade, quando escolhemos viver com alguém, fechamos as portas do nosso coração para o resto do mundo… Escolhas: escola, faculdade, casamento, paternidade, profissão, carreira. Às vezes admiro quem vive seguindo caminhos já mapeados, navegando a potente corrente desenhada pela sociedade. Nunca consegui isso. O rumo que dei à minha vida me trouxe até aqui: Puerto Varas, Chile, no começo de uma viagem de bicicleta de seis meses e 6 mil quilômetros de duração pedalando oito horas diárias em média. Não é sina, não é destino, mas o resultado das escolhas que fiz, dos caminhos que tomei. Transporto um trailer acoplado à roda traseira da bike – são cerca de 30 quilos de material e alimentos. Uso pequenas cidades como base para descansar, recarregar pilhas e baterias (não é uma metáfora) e lavar roupas. Durmo em campings, albergues, cabanas, quintais. Como bastante Miojo.

Um bom começo

A Serra de Queulat foi minha prova de admissão da viagem: três horas de subida. Mas o dia era lindo, com os picos nevados baixando lentamente à altura dos meus olhos, as fontes de água cristalina do degelo escorrendo ao lado da estrada entre flores e borboletas. Quase de surpresa cheguei ao topo da montanha. Um bom começo.

O fim da cordilheira

Na região de Hornopirén, observei um fenômeno geológico único: a Cordilheira dos Andes chegando ao mar como se molhasse seus pés na água. Formam-se fiordes, corredores de mar espremidos entre paredes quase verticais de montanhas. Mas às vezes também passo por trechos nada cênicos, monótonos, em que sinto que a viagem não depende unicamente da beleza da paisagem. Viagem é autoconhecimento. Sem distrações lá fora, tenho tempo para observar o cenário que muda dentro de mim.

O vento

O vento é um dos meus maiores desafios. De dar dor de ouvido e arrancar etiqueta de roupa (juro). Ele foi intenso no caminho de Chile Chico, durante 72 quilômetros de estrada. A sorte foi o visual que me cercava: as águas azuis do Lago General Carrera, montanhas nevadas ao fundo, os pampas com seus arbustos ressequidos pintados de tons de ocre, amarelo, verde, roxo… Na saída da cidade, o vento como que tinha duas mãos postas no meu peito, impedindo o deslocamento. Para piorar, nessa estrada esculpida em rocha havia sulcos por onde ele encanava. Chegou a me derrubar da bicicleta.

Amicci miei

No caminho, faço amigos que se tornam próximos tão rápido quanto somem da minha vida. Como a professora americana Rebecca Church, com quem pedalei rumo a Coyhaique. Ou os três sessentões que encontrei na Laguna Verde, os quais me convidaram para um cordeiro na fogueira, típico asado local. O italiano disse: “Ciclisti sono tutti matti” (“Ciclistas são todos loucos”). Às vezes eu também acho.

O voo dos condores

Havia seis condores voando acima da minha cabeça. Pensei: “Sai pra lá! Não sou carniça ainda!” Depois me dei conta de que o que está à minha volta não depende de mim. Quando eu não estiver mais aqui, os condores, os pumas, os fiordes e as lagoas simplesmente continuarão.

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Vitórias e derrotas

Não dá para ganhar todas na Patagônia. Por isso às vezes é importante saber desistir. Quando eu estava sem o trailer e queria explorar a Sierra Baguales, resolvi viajar com pouco equipamento. Os primeiros 15 quilômetros foram tranquilos e cênicos, acompanhando o sinuoso Rio Calafate. Depois o terreno foi ficando pior. Havia pegadas de pumas por todos os lados. O problema é que eu não conseguia me aquecer de jeito nenhum. Já estava com toda a minha roupa sobre o corpo e não tinha fogareiro para fazer um chá. Se tivesse de atravessar um rio, soferia com certeza uma hipotermia. A bicicleta havia se tornado um estorvo, e eu a empurrava. Decidi voltar, vencido, para El Calafate.

Reflexões em Bariloche

Terminei a expedição Transpatagônia. Cheguei a Bariloche depois de exatos 180 dias de viagem e 5.879,74 quilômetros pedalados, sozinho, acampando a maior parte do tempo, percorrendo a Patagônia e a Terra do Fogo. Números que não definem um milionésimo de tudo o que passei e vivi. Agora me sento diante do computador e me obrigo a escrever um texto de conclusão, o mais difícil de escrever. Não sei como começar ou terminar. Muito difícil explicar, em conceitos e palavras, emoções ainda confusas para mim.

Não me sinto nem um milímetro mais sábio que antes, mas é inegável que o exercício constante de viver o momento presente, que a expedição exigiu diariamente de mim, deixou um residual de serenidade (pelo menos nesse instante de reflexão). Hoje, o amanhã me preocupa bem menos. Confirmei, pelo suor e pela dor, que todo dia é potencialmente repleto de oportunidades únicas e que tudo o que preciso fazer é acordar cedo todas as manhãs, bem disposto, preferencialmente com um sorriso no rosto, pronto para viver o que o dia trouxer. O resto acontece naturalmente.

Sinceramente, o que fiz – pedalar por seis meses, acampar, caminhar sozinho por bosques e montanhas, carregar comigo tudo o que necessito para viver – não tem nada de fenomenal ou sequer especial. Ou pelo menos não deveria ter. Qualquer um com bom condicionamento físico e tempo disponível faz igual. Mas, mesmo assim, demorei décadas para me atirar numa aventura como essa. Sempre havia infinitos empecilhos e obstáculos à sua execução, como falta de tempo, dinheiro, energia ou companhia…

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Penso que o grande atrativo dessa minha aventura – tanto para mim quanto para os amigos, conhecidos e desconhecidos que a acompanharam pela internet – e o que a tornou curiosa e instigante, foi justamente o fato dela despertar um sentimento ambíguo e conflitante, um misto de admiração e aversão, inspiração e culpa. Algo talvez parecido com o que sinto, por exemplo, com relação a quem consegue tomar banho frio em qualquer clima… “Que legal, que coragem!” penso, “gostaria de ser assim também…”, e saio à procura de um chuveiro quente.

Olhando para trás, concluo que a expedição tinha que durar pelo menos seis meses. Se durasse menos, eu não conseguiria incorporar as mudanças de hábito que ela impôs. Ela tinha que ser feita toda em bicicleta e ter cerca de 6.000 quilômetros de extensão. Se fosse mais curta, os intervalos de descanso seriam longos e confortáveis demais, possibilitando o retorno de velhos hábitos. Ela tinha que acontecer em contato com a natureza e por uma região isolada, de acesso complicado, castigada por clima imprevisível. É na fronteira com a incerteza que nos aproximamos mais de nossas inseguranças e aprendemos a viver melhor com elas.

A internet e suas ferramentas me possibilitaram, ao longo da viagem, manter contato e até conhecer pessoas. Eu lia com avidez os comentários nas publicações em meu blog. Fiquei encantado com o interesse de tanta gente. Mas, ao mesmo tempo, eu me perguntava por que tantos estranhos se interessavam pela minha aventura…

Minha teoria para toda essa curiosidade alheia é que, um projeto relativamente longo e árduo – recheado de pequenos desconfortos como falta de banho, exposição ao tempo, esforço físico, isolamento, solidão, incertezas e, para minha sorte, encontros amistosos com pumas – contrasta muito com o estilo de vida e comum à maioria de nós. Contrasta e seduz. Sinto que existem cada vez mais pessoas como eu por aí, insatisfeitos com a dinâmica da vida em sociedade, onde somos definidos por nossas profissões, vivemos alienados em nosso trabalho ou estudo, estamos cada vez mais distantes de quem realmente somos ou simplesmente ocupados demais para manter na mente a pergunta essencial – quem sou eu?

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Gostaria de poder dizer que me sinto realizado com o fim da expedição, mas isso não seria verdade. Existe a sensação de realização, mas não a ideia de “missão cumprida”. Essa viagem não marca um fim, nem um começo, mas apenas mais um capítulo. E esse é meu grande orgulho, aquilo que me traz maior satisfação… Esses seis meses de aventura pela Patagônia não foram uma exceção na minha vida. Essa é minha vida. Uma situação que construí lentamente, passo a passo, pedalada a pedalada.

Volto para casa, para o Brasil, já pensando na próxima aventura, que será escrever um livro sobre esses seis meses no fim do mundo. Um livro que incentive, seduza, inspire e lance mais gente rumo ao desconhecido.

Nesses tempos e internet, de Facebook e conectividade, onde geralmente nos vemos cercados de superficialidade e mesmice, tive a imensa alegria de descobrir que estou cercado de pessoas que comungam comigo o amor pela natureza, a disposição em aceitar desafios, o desejo de aprender e se tornar uma pessoa melhor.

A aventura continua.

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* O paulistano Guilherme Cavallari fundou e dirige a Kalapalo Editora, editora integralmente comprometida com os esportes outdoor. Ele é autor de 16 livros com roteiros, técnicas, conceitos e equipamento para prática de esportes de contato com a natureza, com ênfase em mountain bike e trekking. Criou, mapeou e publicou mais de 12 mil quilômetros de trilhas no Brasil, Argentina e Chile. Acaba de chegar de um giro de 6 mil quilômetros, acompanhado apenas de sua bicicleta, pela Patagônia e Terra do Fogo. Mais da sua Expedição Transpatagônia pode ser visto no site kalapalo.com.br

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