Existe uma curiosidade mística sobre o Caminho de Santiago. Desde que voltei, recebo uma avalanche de perguntas sobre essa experiência solitária, feliz e misteriosa. Convido, então, as pessoas a sentar e conto a história que marcou minha vida.
O chamado
Meu interesse pela peregrinação começou há 15 anos, quando visitei a cidade de Santiago de Compostela, na Espanha. Ao entrar na catedral, uma peregrina sentada no chão chorava sem controle. Quando passei, ela me olhou bem no fundo da alma. Foi desconcertante, e nunca mais esqueci aquele chamado.
Sou engenheiro, psicanalista e trabalho em uma grande empresa. Certo dia, fui intimado a tirar 30 dias de férias. Confesso que fiquei aborrecido, ficar tantos dias longe dos meus pacientes e da correria do escritório não seria bom, mas, diante do inevitável, resolvi viajar.
Sentia vontade de ficar perto da natureza e de andar. Andar um mês? Isso seria uma longa caminhada, parece uma peregrinação – isso é Santiago. Foi assim que o velho chamado voltou.
A escolha
Logo de cara descobri que existem muitos caminhos, talvez mais de cem. O mais famoso é o Francês, saindo de Saint-Jean-Pied-de-Port, mas também há o primitivo, o do norte, o do leste, o Inglês, pelo litoral, e o de Portugal, que tem pelo menos oito trajetos.
Escolhi o caminho lusitano partindo de Lisboa, uma rota longa com poucos peregrinos e que se mostrou bem difícil nos primeiros dez dias. Foi nessa mesma época que escutei do dono de um albergue a história de um velho coreano que já havia feito, descalço, mais de 30 rotas.
Naquela noite, antes de dormir, olhei com carinho para meus pés. Semanas depois, já no Caminho, tentei a proeza de andar sem as botas. Claro, não deu certo.
A segunda decisão importante foi a data de partida. Como adoro flores, fui na primavera, simples assim. Cada época tem sua beleza e suas dificuldades.
Conheci um peregrino que fez o Caminho no inverno; ele me contou que a sensação de passar frio todos os dias fez com que deixasse de ser resmungão.
O desapego
O que levar foi uma preocupação. Levei o mínimo de roupa: quatro camisetas, três pares de meias, três cuecas, duas calças-bermudas, uma toalha minúscula de alpinista, um boné legionário, um fleece e uma capa de chuva.
Minha mochila começou com 6 quilos, e ao longo do mês ainda consegui me livrar de algumas coisas. Conversei com um português que estava desistindo da caminhada – tinha uma bolha no pé do tamanho de um limão. Dava calafrios só de olhar. Sua mochila pesava 14 quilos. Peregrinação não combina com peso.
A escolha do calçado foi importante também. Escolhi botas impermeáveis. Tiro certo, pois se mostraram úteis e confortáveis. Em um dia de chuva andei com um inglês que usava tênis de corrida. Bem, ele ficou com os pés encharcados por horas, e era visível seu desconforto.
A preparação
Antes de embarcar me preparei fisicamente. Fiz aikido três vezes por semana e andei em média 15 quilômetros aos sábados. Isso ajudou, mas na verdade a forma física veio só após o quinto dia de andança. Uma alemã, mesmo sendo maratonista, teve uma queda violenta de pressão no seu segundo dia; foi um sufoco restabelecê-la.
Levei 1 500 euros em espécie e um cartão de crédito. Foi mais do que o suficiente. Gastei, entre estadia e refeições, 40 euros por dia. Não há onde gastar na peregrinação.
Enfim, a partida
A caminhada oficialmente começou quando comprei, na Catedral de Lisboa, a “Credencial do Peregrino” e recebi meu primeiro carimbo. Esse documento serviu para entrar nos albergues e para registrar, através dos carimbos, o trajeto e o ritmo da caminhada.
Em Santiago ele é a garantia para receber a Compostela, um tipo de diploma do caminhante. Com o passaporte em mãos, resolvi ficar e assistir à missa de domingo.
Ainda bem que me sentei nas últimas filas, pois tive um acesso de choro. Que vergonha… Fui dormir com um sentimento estranho e com uma frase na cabeça:
Você não precisa explicar Deus, basta senti-lo.
E isso iria me acompanhar a viagem toda.
No Caminho se anda por cidades, vilas, estradas e matas, sempre procurando e seguindo as setas amarelas, dinâmica feliz que lembra uma gincana. Elas aparecem pintadas em muros, postes, árvores e até no chão.
Em alguns lugares estão a cada 30 metros, em outros a cada quilômetro. Pois bem, quando se caminha por 15 minutos sem encontrá-las é um sinal provável de estar perdido. Parece pouco tempo, mas isso representa 2 quilômetros fora da rota. Eis um dos desafios do Caminho.
A primeira mensagem
Um dia depois da missa, acordei antes do amanhecer, tomei um café simples e parti.
Esse primeiro dia foi inesquecível. Depois de já ter andado por 18 quilômetros, me vi perdido. Nesse momento deparei com Luigi, um peregrino que dizia conhecer o Caminho. Fé no italiano, resolvi segui-lo até descobrir que ele estava mais perdido do que eu.
Meio aborrecido, decidi voltar até a última seta avistada, que estava bem longe. Luigi, contrariado, seguiu em frente. Eu voltaria a reencontrá-lo dias mais tarde, esgotado e contando que se desviara da rota por 50 quilômetros.
Depois de mais de hora andando na direção oposta, achei o caminho correto. Ele passava por um bosque lindíssimo às margens de um rio. Foram tantas horas mágicas apreciando as flores do mundo que mal notei o calor do Senegal que fazia.
No final desse trecho, percorridos 28 quilômetros, notei que estava novamente perdido. Onde estaria a cidade marcada no mapa? Comi algo ao lado de uma casa abandonada e voltei ao Caminho com medo.
Passada 1 hora, minhas pernas travaram. Tentei retomar, mas não conseguia mais andar, estava amarrado, exausto e com medo. Foi assustador o sentimento de desamparo e solidão.
Comecei a chorar silenciosamente e, cabisbaixo, vi minhas lágrimas caindo em direção a meus pés. O que fazer? Fechei os olhos, e lá do fundo saiu um pedido sem pensar – e sem censura -, um ato falho: “Pai, hoje não preciso da sua ajuda. Preciso que me carregue!”
O que é isso, companheiro? Nem eu acreditei no que havia dito. Entretanto, algo misterioso aconteceu, e eu me senti renovado, meus pés destravaram, e voltei a andar plenamente.
Passados 10 quilômetros, comecei a achar que vivera uma alucinação, talvez fosse o famoso segundo fôlego dos atletas. Nesse instante passava ao lado de um pequeno canal que desembocava no Rio Tejo.
Meio como bravata, meio como descrença, pedi novamente: “Pai, se você está ao meu lado, me mostre um peixe nesse rio”. Não deu tempo para me arrepender do pedido infantil, um peixe enorme apareceu, veio na minha direção, nadou em círculo e afundou vagarosamente.
Incrédulo, caminhei atordoado até chegar a uma pequena cidade onde me dirigi ao albergue do corpo de bombeiros. Uma jovem brigadista me explicou que existia um erro no meu mapa e que ali não havia mais local para dormir.
Sentado, fechei os olhos e me lembrei do que havia pedido ao Pai, quando uma mão tocou meu ombro e me disse que uma viatura dos bombeiros viria me buscar e me levar para outro albergue. No trajeto, dentro do carro de bombeiros, pensei: se isso não é ser carregado, o que poderia ser?
Tudo ganhou sentido naquele momento. O Caminho serviria para reviver uma fé que eu tinha perdido havia anos.
Finalmente eu tinha entendido o porquê da peregrinação. Nessa noite dormi muito bem e pela manhã senti algo novo, era como se um velho amigo caminhasse ao meu lado e por pensamento conversássemos. A partir de então comecei a notar momentos misteriosos de acolhimento e proteção.
Tenha fé: o “amigo” está por perto
Em um fim de tarde, após mais de 30 quilômetros de caminhada, para me distrair da chuva eu ouvia música. De repente escutei alguém me chamar pelo nome. Parei, surpreso. Tirei o capuz, os fones e pensei: “Nossa, tem alguém aqui que me conhece!”
Olhei para trás e vi um homem acenando com os braços. Quem poderia ser? Contrariado, dei meia volta e, quando me aproximei de um velho português, escutei: “peregrino, você está na direção errada. O caminho correto está lá naquelas árvores”. Fiquei muito surpreso.
Claramente ele não havia me chamado pelo nome, porém eu só havia parado porque tivera essa percepção. Não podia explicar o mistério, mas sabia que meu velho amigo estava por perto. Já no albergue, dois brasileiros me contaram que haviam se perdido no mesmo lugar e por isso caminharam 7 quilômetros a mais.
No quarto dia, tomei meu café da manhã preocupado com dinheiro. No mesmo momento uma sensação de que nada me faltaria encheu minha mente. Claro que não acreditei.
Acabei meu pãozinho e me dirigi ao caixa, quando um homem parou de ler o jornal, se levantou e me disse: “posso pagar a sua conta? Esse era um costume que se perdeu, e eu gostaria de fazer isso por você”. Duplamente envergonhado, aceitei.
Com um nó na garganta, perguntei o que poderia fazer por ele. “Reze por mim em Santiago”, respondeu. Olhei nos olhos aquele senhor e disse que rezaria por ele ainda pela manhã. Comovido, ele me abraçou.
Nos dias seguintes, uma velhinha me ofereceu laranjas maduras, disse que era um presente. Um lojista correu em minha direção com um saquinho de bolachas e maçãs, na padaria eu ganhei pastéis de clara e, no restaurante, suco.
Era como se todos falassem: tenha fé. Esses são alguns exemplos, dentre vários, que finalmente me convenceram. Pior do que São Tomé, precisei ver várias vezes para crer.
Uma lição por dia
A partir desse ponto, com a fé revigorada, aprendi uma lição por dia.
Foram 23 lições, agrupadas em cinco revelações: o Divino está presente, o corpo é frágil, relacionamentos são difíceis, maturidade requer aceitação, e tristeza é como sujeira.
Cada revelação se mostrou por meio de várias situações, algumas misteriosas, que aconteceram ao meu redor. Com exceção da última, que foi física.
Havia muito eu me sentia triste, sabia os porquês, mas não conseguia me livrar desse sentimento. Achei que na peregrinação teria todo o tempo do mundo para refletir sobre meus problemas. Bom, não foi isso que aconteceu.
Durante o dia ficava tão cansado que não tinha vontade de pensar nos problemas, apenas caminhava. E foi assim que melhorei. No começo senti fortes dores no estômago, algo que me preocupou por cinco dias. Quando a dor passou, eu me tornei emotivo e me vi chorando em vários pontos da caminhada.
Por último, mais calmo, notei uma felicidade aparecendo e me curando de dentro para fora. Sentia-me como um pano encardido que, após 30 dias de molho, teve sua sujeira levada pelo enxágue, ou melhor, levada pelo suor.
Depois de 670 quilômetros, cheguei a Santiago, feliz e realizado. Fui diretamente para o Centro Internacional de Acolhimento ao Peregrino.
Depois de uma pequena fila, uma senhora simpática olhou todos os carimbos do passaporte e com um belo sorriso me entregou a Compostela. Com o diploma nas mãos, era a hora da missa dos peregrinos.
Foi uma cerimônia linda, e chorei um pouquinho. Estava em profunda paz ao perceber que as pedras, as flores e os mistérios de Santiago haviam revitalizado minha fé e minha gratidão pela vida. Eu havia sido acolhido e tinha certeza de que tinha caminhado solo, mas nunca sozinho.
Em busca da felicidade
As lições do caminho francês, por Bruna Lombardi
A ideia de encontrar a felicidade nos acompanha, mesmo que a gente não perceba – a cada viagem, a cada aventura, em cada pequeno recanto, a cada romance. Fazer o Caminho de Santiago, no entanto, é diferente: carece de propósito. É uma peregrinação, um despegar do que temos em busca do que somos.
Exige preparação. Afinal, é um desafio físico em primeiro lugar, mas vai além. Cansaço, dores no corpo, bolhas e feridas nos pés são a rotina do caminhante, mas não os únicos problemas. Também é fundamental carregar o mínimo possível.
Desapegar nos faz compreender que só precisamos do essencial. E essa é uma das lições do Caminho: descartar aquilo que nos pesa também na alma e no coração. Assim, mais leves, nos aproximamos da nossa natureza ao longo desse exercício que é solitário mesmo que se viaje acompanhado.
Muitas rotas levam a Compostela. Fiz o Caminho Francês, que começa em Saint-Jean-Pied-de-Port, entra na Espanha por Roncesvalles e segue por 800 quilômetros até Santiago.
Minha peregrinação, em vez de solitária e espiritual, foi um comboio de mais de 300 pessoas que participavam das filmagens do nosso filme Onde Está a Felicidade?, uma comédia que mostra como é possível cometer os erros mais comuns do comportamento humano mesmo quando buscamos o sagrado.
Seguimos por lugares como Pamplona, Puente de la Reina, Logroño, Burgos, León, parando em cada pequena cidade da Galícia. Como minha personagem era uma chef de cozinha, pude conhecer a excelente gastronomia da região. Pratos simples, como as tortillas, as setas (cogumelos) e as fantásticas alcachofras refogadas com alho e azeite.
Filmamos nos subterrâneos da Lopez de Heredia Viña Tondônia, que produz vinhos excelentes há mais de 200 anos. Fica na cidade de Haro, na zona da La Rioja Alta, onde há um hotel maravilhoso, o Los Agustinos, em um antigo convento. Vale ficar lá uma noite pelo menos.
Equilibrar espiritualidade com prazer e alegria faz parte da mistura contemporânea do trajeto. Atravessar cidades medievais, subir montanhas inacreditáveis, tomar vento e chuva, caminhar sem parar até chegar a Santiago e cair emocionado no chão da praça, chorando e com o vitorioso sentimento de ter superado cada etapa. E voltar para casa, renovado e feliz.
Texto publicado na edição 254 da revista Viagem e Turismo (dezembro/2016)