Onde curtir o melhor da música e da gastronomia de Nova Orleans

Dos músicos de rua aos jacarés brancos, da jambalaya ao mint julep, os sons, os sabores e a fauna da cidade de alma creole

Por Sérgio Martins
Atualizado em 9 out 2024, 17h19 - Publicado em 2 ago 2013, 11h45

Sister Light me mostrou o caminho. A moça é uma das videntes que circulam pelo French Quarter, centro nervoso de Nova Orleans. Por US$ 15, Sister previu uma vida de grandes realizações e paixões e disse que o segredo para o sucesso é obedecer ao meu coração. Assim, meu olhar musical sobre Nova Orleans é também um desejo dos seres – profanos ou não – que moram ali. Berço da música gospel e do jazz (e terra natal de Mahalia Jackson e Louis Armstrong), Nova Orleans está repleta de casas noturnas, bares e até hotéis com apresentações ao vivo, a maior parte no French Quarter. O caminho da felicidade se inicia na Decatur Street, endereço da Louisana Music Factory, a melhor loja de discos da cidade. O acervo primoroso vai dos veteranos Armstrong, Professor Longhair e James Booker a jovens como Trombone Shorty e o grupo de metais Soul Rebels. As vantagens daqui são que há sempre um pocket show com músicos locais e os vendedores não rosnam de desprezo quando você tem dúvida sobre um disco. O segundo andar traz um acervo respeitável de LPs de vinil, com lançamentos – em vinil – até pechinchas de soul music por US$ 1. Bem em frente à loja fica uma das casas de melhor acústica da cidade, a House of Blues, que abre espaço para artistas de menor escalão (apenas em popularidade, claro). Como eu disse, a acústica é impecável, mas a decoração, nem tanto. Uma estátua malfeita dos Blues Brothers recepciona o público, e o espaço todo parece saído de uma casa de vodu.

Fog matinal nas franjas do French Quarter, em Nova Orleans Fog matinal nas franjas do French Quarter, em Nova Orleans

Fog matinal nas franjas do French Quarter – Foto: Corbis

As principais atrações do jazz de Nova Orleans estão concentradas na Frenchmen Street, no fim da Decatur Street. A Frenchmen tem uma grande concentração de bares, todos com música ao vivo, muitos com ingresso ao preço de um drinque. Às vezes essas boates estão tão cheias que é mais recomendável ficar do lado de fora, dançando ao som do quarteto de trombones Bonerama. Ou então perambular pela rua e curtir um pouco de cada apresentação. Além das boates, a rua tem livrarias, casas de tatuagem e uma feirinha de artesanato. Se você tiver sorte, poderá ver até performances de bandas de metais. O charme desses miniconcertos é que o repertório traz sucessos pop de Beyoncé a Michael Jackson, não se resumindo a clássicos do jazz – e você vai enjoar de tanto escutar When the Saints Go Marching In… Embora os concertos sejam na rua, dar uma gorjeta aos rapazes serve como incentivo e ganha pontos na hora de tirar fotos. Para paladares e gostos musicais mais sofisticados, o Snug Harbor traz uma ótima seleção de frutos do mar, carnes e hambúrgueres e apresentações das famílias musicais mais importantes da cidade, como os irmãos Neville e Marsalis (que, aliás, são donos da casa).

Jazz parade, em Nova Orleans Jazz parade, em Nova Orleans

Jazz parade – Foto: Age Fotostock/Keystone Brasil

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Sodoma e Gomorra

A célebre Bourbon Street também fica no French Quarter. Sua fama, no entanto, se deve mais ao clima de pecado do que à excelência musical. A rua é reduto de botecos, dos clubes de striptease, de turistas jovens e desinibidos que sacam suas vergonhas para fora em troca de beads, aquelas bijuterias que são jogadas das sacadas das casas noturnas, dos hotéis e dos restaurantes. Os jazzistas têm uma certa resistência contra a rua. “Não há espaço para música original, só para bandas cover”, explica Trombone Shorty, o artista de maior projeção no cenário pop da cidade. Trombone, cujo nome verdadeiro é Troy Andrews, já tocou na banda de Lenny Kravitz e fez o show de encerramento do New Orleans Jazz & Heritage, o principal evento musical da cidade, realizado entre abril e maio. Mas, em meio a um cenário que lembra Sodoma e Gomorra (e que pela manhã cheira a desinfetante, utilizado aos litros para esterilizar os excessos da noite), Bourbon Street é endereço de duas moradas do jazz. A primeira é a sede da Preservation Hall Jazz Band, no número 726 da St. Peter Street – quase esquina com a Bourbon. Com cinco décadas de vida, a Preservation toca jazz do início do século 20 todas as noites das 18 às 23 horas. As cadeiras são de madeira e palha trançada, o assoalho range, e quem se atrever a dançar pode acertar o olho do outro, mas é uma viagem aos primórdios do jazz que vale cada centavo – deposite as gorjetas no baldinho do palco. Adiante, no Royal Sonesta Hotel, a Jazz Playouse, do trompetista Irvin Mayfield, apresenta novos e veteranos talentos. Desconhecido no Brasil, Mayfield é diretor musical da New Orleans Jazz Orchestra, embaixador cultural da cidade e figura poderosa do showbiz local. O pai de Mayfield morreu ao se recusar a abandonar sua casa durante a inundação do Katrina. A perda resultou em May Them Rest in Peace, uma das mais belas composições do jazz contemporâneo, e em uma luta pessoal pela revitalização da cena noturna. O tour musical se encerra no Kermit’s Treme Speakeasy, do trompetista Kermit Rufns. O lugar é uma mistura de casa noturna e restaurante onde as receitas com diversas carnes são de autoria do próprio Rufns – e preparadas em uma panela comprada em São Paulo! Tremé, primeiro bairro de negros libertos dos Estados Unidos, não é muito receptivo a turistas; por isso, recomendam-se cautela e um taxista amigo.

Bourbon, a própria, em Nova Orleans Bourbon, a própria, em Nova Orleans

Bourbon, a própria – Foto: Age Fotostock/Keystone Brasil

…E o Vento Levou

Nova Orleans não se resume à música. Quem sair da ferveção do French Quarter e descer a St. Charles Street (US$ 1,25 o bondinho) vai deparar com orgulhos da arquitetura sulista. Salte no Garden District, antes do ponto final, para admirar casas do início do século 19 que parecem saídas de …E o Vento Levou. Como as construções pouco sofreram com o Katrina, circularam boatos de que a queda das barreiras teria sido um ato humano para que a cidade se livrasse da população pobre. No bairro mora o trompetista Terence Blanchard, autor de trilhas dos filmes de Spike Lee. Ele divide um luxuoso sobrado com a mulher, as filhas, um piano e sete prêmios Grammy. Ao ver sua cidade arrasada, Blanchard transferiu o Instituto de Jazz Thelonious Monk, do qual era presidente, de Los Angeles para Nova Orleans. “Eu achei que devia trabalhar na recuperação da autoestima da cidade”, explica. O passeio pelo Garden District se encerra com uma visita ao Audubon Zoo, que recria um típico pântano sulista e abriga raros jacarés brancos.

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Os museus são atrações injustamente pouco divulgadas de Nova Orleans. Na Jackson Square, o Lousiana State Museum conta a história dos colonizadores espanhóis, franceses e americanos no estado por meio de artefatos, documentos e pinturas – inclusive um quadro de Madame Laveau, a primeira sacerdotisa vodu da cidade. Perto do Garden District estão o Ogden Museum, dedicado à arte sulista, e o Second World War, que traz um documentário em 4D, Beyond All Boundaries, narrado por Tom Hanks. As cenas de bombardeio e a chegada dos tanques alemães aos desertos da África são de um realismo impressionante, acentuado pelos tremeliques das cadeiras.

Varandas de ferro, em Nova Orleans Varandas de ferro, em Nova Orleans

Varandas de ferro – Foto: Age Fotostock/Keystone Brasil 

Abacaxi com casca

Um passeio por Nova Orleans pede ainda uma aventura no pântano e uma aula de história em uma fazenda. Em Lafite, a poucas milhas, pode-se apreciar a vegetação do pântano e dar de comer aos jacarés no barulhento barco da Airboat Adventures. Os pratos mais apreciados pelos répteis são, pela ordem, marshmallow e frango – que o guia deixa na borda do barco para que o jacaré suba e sacie a curiosidade dos turistas. Chamadas de plantations, as fazendas de cana de açúcar são imperdíveis por causa da arquitetura e da aula sobre os antigos costumes do Sul do país. Nos encontros, por exemplo, as moças casadoiras eram acompanhadas pelos pais – que literalmente seguravam uma vela ao lado das filhas. Quando eles encurtavam o comprimento da vela, era sinal de que o pretendente não interessava à família. Outra: abacaxi na cama da visita era sinal para ir embora. Na verdade, os fazendeiros recebiam suas visitas com a fruta cortada como gesto de hospitalidade. O abacaxi inteiro em cima da cama era um mimo para o visitante comer na viagem para casa… A plantation mais famosa é a Houmas House, cenário de filmes como Entrevista com o Vampiro. Recomenda-se fazer o passeio por fora da mansão sorvendo o mint julep, um drinque preparado com uísque, menta, água e açúcar.

Em Nova Orleans, comem-se delícias gordurosas de alargar o cinto. O jazz brunch do The Court of Two Sisters, no French Quarter, tem guloseimas como jambalaya (a paella local), frutos do mar frescos e doces diversos – entre eles o King’s Cake, a versão creole do panetone. Turistas com mais sangue nas veias podem se deliciar com o gumbo (guisado de carne ou marisco com legumes), superapimentado no Coop’s Place, lanchonete em que até o mau humor das garçonetes faz parte do charme. Para uma noite romântica, o passeio pelo Rio Mississippi a bordo do barco a vapor Steamboat Natchez já vem com um jantar típico. Mas, para quem – como eu – aprecia um bom sanduíche, a muffulletta (pão italiano com provolone, salame, copa e picles) é um presente do céu, e o po’boy (pão francês com recheios que vão de camarão empanado a almôndegas), uma dádiva divina. Só os quilos na balança são obra dos espíritos maus de Nova Orleans.

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Jambalaya, a paella creole, em Nova Orleans Jambalaya, a paella creole, em Nova Orleans

Jambalaya, a paella creole – Foto: Corbis

Em setembro de 2005, o Katrina derrubou as barragens do Mississippi e alagou 80% da cidade. A tragédia mostrou o despreparo da prefeitura, que subestimou o furacão, e do governo federal, que demorou no socorro. Oito anos depois, os efeitos ainda são visíveis, apesar de esforços de atores como Brad Pitt e de músicos como Branford Marsalis, que bancaram a construção de moradias. Há casas abandonadas, e muitos habitantes não voltaram à cidade. O turismo assimilou o desastre com os Katrina Tours, que percorrem as regiões mais afetadas. “O Katrina chamou atenção para os problemas sociais de Nova Orleans”, diz o roteirista Lolis Eric Elie. Ele faz parte do time de redatores de Tremé, série da HBO que mostra os desdobramentos da catástrofe abordando temas como criminalidade, corrupção policial e racismo. Embora os habitantes de Nova Orleans sejam hospitaleiros – seu jeito largadão ganhou o apelido de big easy –, em uma visita à cidade se recomenda não andar sozinho à noite pelos bairros menos turísticos nem dar trela para abordagens. A falta de perspectiva gerou um aumento da criminalidade que o prefeito Mitch Landrieu não conseguiu estancar. Mas ainda resta esperança. Foi o que me garantiu Sister Light.

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